sábado, 12 de dezembro de 2015

As Pedras de Elementra - Origem 01

. Maya e a Gema de Água 

-Eu tenho inveja de você, Maying! - Elizabeth disse.

-Inveja? Não vejo como. - murmurei, revirando os olhos - E eu já disse para não me chamar de Maying. Meu nome é Maya.

-Isso é bem óbvio... - Eyerin interviu, tímida como sempre - B-Basta olhar para você... Suas atitudes... Seus cabelos tão perfeitinhos...

Eu encarei minha amiga por um momento, expressando dúvida. 
Estávamos no meio de uma aula de filosofia. A professora - uma irresponsável - não compareceu. Todos da classe fizemos o mais óbvio possível numa situação dessas. Abandonamos a sala de aula e fomos para o pátio matar tempo. 
Eu e minhas duas amigas, Elizabeth e Eyerin, nos apossamos de um lugar abaixo das árvores e começamos a conversar. 

-Fala sério. - suspirei - Só temos uma pequena diferença de coragem, nada demais.

-É fácil dizer isso quando se é a mais admirada pelos rapazes, não é mesmo, Maying? - Elizabeth riu maliciosamente.

-Você tem problemas, Elizabeth. - bufei - Eyerin, você é racional. Diga a ela que toda essa conversa é furada.

-Eu concordo com ela, M-Maya... - Eyerin se escondeu debaixo de seu capuz.

-Motivos? 

-B-Bem... Como mencionei antes... Seus longos cabelos negros são p-perfeitos! Nem mesmo sofre de pontas duplas... - Eyerin então segurou suavemente uma parte de seu cabelo loiro escuro e os acariciou com a mão - F-Fora sua coragem inigualável. Todos a respeitam e gostam de você... 

Desejei não ouvir mais daquela baboseira.

-Todos me temem, Eyerin. E com razão, aliás. Bando de idiotas, imprestáveis. Vocês são as únicas pessoas decentes por aqui.

Elizabeth abraçou-me.

-Também te amamos, Maying! Venha você também, Eyerinny!

-Não sou chegada a abraços, Elizabeth...

-Não seja tão anti-social, Eyerinny. - Elizabeth resmungou.

Todas estávamos vestidas de acordo com as normas da escola: um uniforme nas cores verde e branco. Eu usava uma camisa de mangas curtas e uma calça jeans, enquanto Elizabeth vestia por cima de sua camisa um casaco de verão, o oposto de Eyerin, com seu casaco de inverno. Ambas usavam as calças típicas da escola. 
Eu particularmente não as suporto, então não as uso. Não há diretor ou supervisor que ousa reclamar comigo sobre o uso de calças adequadas, então por que não?
Eu possuo, como mencionado, cabelos compridos e escuros, sim. Além disso, meus olhos são do castanho mais escuro possível - é o que dizem todos aqueles que me conhecem - e minha pele é um pouco clara demais. Motivo? Não sou fã de tomar sol. 
Elizabeth possui olhos azuis cintilantes e cabelos castanho-claro na altura de seu ombro. Ela é o único pedaço de brilho ambulante que eu aguento e gosto. 
Já Eyerin, possui inocentes olhos verdes. Seus cabelos loiros escuros são longos, e geralmente estão presos em uma grande trança. Ela é com certeza a pessoa mais tímida e fechada que conheço. Ela me faz querer protegê-la.

-Já pode me largar, Elizabeth. - tossi, tentando alertá-la.

-Ah, vaaaamos! Não seja assim. Não guarde este belo corpo só para você. - ela brincou, abraçando-me mais forte.

"Ela acabará me sufocando" pensei.

-É sério, já pode largar. Respirar não é mais tão fácil... 

Com um murmúrio de lamentação, ela me largou e se afastou.

-Obrigado. - recuperei minha respiração.

-Mas eu falei sério sobre não guardar esse belo corpo. - Elizabeth riu.

-É melhor que esteja brincando...

Ela tremeu e se jogou para trás.

-Oh, não! A grande Maya destruidora de corações vai fazer algo terrível comigo, estou apavorada! - ela dizia dramaticamente.

Algumas pessoas próximas olharam em nossa direção. Meu olhar ameaçador foi o suficiente para dispersar sua atenção de meu pequeno grupo.

-S-Seja menos escandalosa, Elizabeth! Por favor... - Eyerin quase elevou sua voz.

Normalmente é possível confundir suas falas com sussurros, pois o volume de sua voz é consideravelmente baixo.
Após o fim do surto de Elizabeth, fomos jogadas em um estranho silêncio. 

-Eu gosto desse silêncio. - Eyerin comentou - É relaxante. 

-Talvez um pouco de calmaria seja algo bom em nossa movimentada vida de colegiais, não é mesmo? - Elizabeth sentou-se em uma posição mais confortável.

Eu estava escorada em uma árvore, observando enquanto uma folha caía. Eu a acompanhava calmamente com meu olhar. Tudo corria bem para nossa pequena protagonista folha, apresentando sua incrível peça de queda impactante, quando de repente um vento incrivelmente forte soprou, levando-a para longe. 
Aos poucos, o céu, antes azul e com poucas nuvens, tornou-se cinzento e ameaçador. Senti algo ruim prestes a acontecer.

-Ficou frio de repente. - Elizabeth se abraçou.

-Heh. - Eyerin abriu um sorriso, sentindo-se superior.

Ela aumentou o abraço que estava dando em seu casaco, esfregando na cara de Elizabeth sua proteção quentinha de tecido.

-Você pode ser bem cruel, Eyerinny. - Elizabeth choramingou.

-Meninas, temos companhia. - eu alertei ao notar a presença de mais pessoas.

Era um grupo de cinco pessoas.
Inicialmente, estávamos sentadas na grama, dentro de um grande espaço circular habitado por árvores. O local aonde nos encontrávamos ficava próximo da delimitação da área circular. Próximo de nós havia o ginásio esportivo. Um pouco mais além, o prédio da escola. 
Reparei que somente eu e minhas amigas e, claro, os intrusos desconhecidos, éramos as únicas pessoas em todo o pátio. Provavelmente os demais grupos haviam retornado ao prédio principal, devido ao mau tempo.
Eyerin foi a primeira a se levantar, devido a estar mais próxima dos desconhecidos.
Elizabeth seguiu sua reação e estendeu sua mão para mim. Eu a agarrei e levantei em um pulo.
Analisei os desconhecidos. Das cinco pessoas, duas eram meninas e três eram meninos. Os garotos pareciam o tipo de rapazes populares que gostam de ter atenção. Um deles usava um estilo de cabelo exagerado, um topete que para mim nada mais é do que ridículo. Outro usava uma camisa sem manga, tentando mostrar seus "músculos" - convenhamos que não é lá algo muito diferente dos demais garotos. Já o terceiro, aquele no centro de todos, era notavelmente mais alto e mais encorpado que os demais, do tipo que colocaria medo em qualquer um. 
"Uma dica para você: eu não posso ser amedrontada."
As duas meninas ao lado do garoto central eram sem importância. Mal olhei para elas, porém, mesmo olhando pouco, eu consegui notar sua maquiagem brilhante e seus cabelos presos em rabos de cavalo.
"Como essas meninas conseguem usar maquiagem tão pesada logo de manhã?"

-O quê querem aqui? - confrontei-os diretamente.

Pela situação, eu conseguia notar que algo sairia errado. 
Pude notar a força do vento sendo intensificada cada vez mais. Um grande temporal estava para acontecer.

-Maya, acho melhor sairmos daqui... - Eyerin segurou minha mão e apontou para o prédio principal.

-Claro, Eyerin. Só espere eu resolver esse assunto aqui. - após a última palavra, voltei a encará-los - Não dirão nada?

O grandalhão resolveu falar.

-Eu sou um aluno transferido. Meu nome é Alejandro. - ele se apresentou - Há um boato por aí de que a "autoridade" por aqui é uma garota chamada Maya. Esta é você, não é mesmo?

-Entendo. Veio prestar o seu "longa vida à rainha"? Estou lisonjeada, mas basta nunca mais entrar em meu caminho. 

Seu olhar foi lentamente ficando mais e mais sério. 

-Você quer demarcar território? Nossa, que coisa mais infantil da sua parte. - segurei a mão de Eyerin e de Elizabeth - As pessoas inventaram essa história de "Maya manda no pedaço", grandalhão. Quer um título de nobreza? Volte à Idade Média e compre um. Eu não tenho título algum em minha posse.

Junto de minhas amigas, tentei caminhar de volta para o prédio principal, entretanto, fomos impedidas. Os dois garotos restantes se colocaram em nosso caminhos.

-O quê foi agora? - rosnei.

-Você nos deve, Maya. É hora de pagar. - uma das meninas irrelevantes disse.

-Hey, Eyerin, você que tem boa memória... Eu conheço algum deles? - sussurrei para minha companheira.

-COMO PODE DIZER ISSO DE NÓS?! - a outra menina irrelevante interviu.

-Maya, você já brigou com todos aqui, com exceção de Alejandro, claro. - Elizabeth respondeu, cortando a fala de Eyerin.

-Oh. - exclamei - Então eu não deveria reconhecer eles?

-Sua mente é algo... confuso. - Eyerin esclareceu.

"Verdade." 

-Parem de enrolar e digam logo o que querem, Alejandro e companhia. - pedi, estressada.

-Queremos vingança! - o garoto desesperado por atenção gritou.

-Tá, mais alguma coisa?

-Você deve sofrer a mesma humilhação que sofremos! - o garoto de cabelo exagerado apontou na direção de minha cara.

Dei uma cabeçada em seu dedo.

-Não é educado apontar para as pessoas. 

Soltei as mãos de minhas amigas e me virei para elas por um momento.

-Fiquem de fora. Corram para a escola, eu dou um jeito nisso. Diplomaticamente. - pedi.

-Mas, Maya, sua diplomacia envolve seus punhos! - Elizabeth choramingou - São cinco contra uma dessa vez, e aquele ali conta como três!

-C-Chamaremos um professor para ajudar! - Eyerin prometeu.

Logo após isso, Eyerin pegou o braço de Elizabeth e a puxou em direção da escola. As duas garotas sem importância empurraram minhas amigas para trás, jogando-as no chão. Senti gosto de sangue na boca instantaneamente.
"Vocês não têm DIREITO de tocar nelas."

-Afastem-se delas. Não vou repetir. - encarei-as.

-Não é com elas que você deve se preocupar, Mayazinha. - o garoto do cabelo exagerado disse - Alejandro, sinta-se a vontade.

Ele estralou as juntas de seus punhos.
Senti gotas de chuva em minha pele. A tormenta havia chegado.

-Vamos todos para dentro, por favor! - Elizabeth tentava se esconder da chuva, usando seu casaco como capa.

-Corram. Eu dou um jeito aqui. - sorri para elas.

Nesse meu pequeno momento de guarda-baixa, Alejandro socou minha barriga com força.
Curvei-me de dor.

-Então o novato é um grandalhão, um sem cérebro e um sem espírito também? Você me enoja. - voltei a minha posição inicial.

Corri em sua direção e tentei o acertar no mesmo local onde fui atingida. Ele quase não sentiu o golpe. Pelo contrário, ele gargalhou.

-Esperava um desafio maior.

Eu cuspi no chão a sua frente. 
"Vamos ver o que pode fazer."
Preparei-me para avançar em sua direção. Algo tocou meus dois braços. Os dois garotos restantes estavam me segurando.

-O quê? São tão covardes assim? Precisam de três para bater em uma menina indefesa, e ainda por cima imobilizando ela? 

Alejandro acertou outro golpe em minha barriga. 
A chuva tornava-se cada vez mais forte, começando a trazer uma sensação dolorosa ao contato com a pele.

-Vocês são patéticos.

Outro golpe.

-Vencer assim é muito mais constrangedor do que perder, sabiam? 

Mais outro soco. Ele repetiu o golpe várias vezes. Elizabeth e Eyerin tentavam ajudar, mas se encontravam presas pelas outras duas garotas. 

-Vocês são patéticos. - repeti.

-Só sabe falar, não é mesmo? - o garoto do cabelo zombou.

-Maying! - Elizabeth gritou, prestes a chorar - Parem de machucar ela!

-E-Ela vai dar um jeito... - Eyerin tentou acalmá-la.

Alejandro preparava um novo ataque. 
"Já cansei de vocês."
Minhas pernas não estavam presas. Levantei-as, aproveitando a imobilização dos dois garotos, e chutei o grandalhão à minha frente com toda a força. Aproveitando o momento de espanto dos garotos, acertei-os com meus cotovelos e me soltei de seu aperto.

-Ufa... - Eyerin suspirou.

Ferida, fui obrigada por meu corpo a me curvar. 

-Seus socos são bem firmes. - admiti - Mas agora acabou a brincadeira.

Reergui-me e movi o pescoço, estalando minhas juntas. Rodei um pouco meu ombro esquerdo, incomodado pela imobilização.

-Agora eu estou brava.

As duas meninas escolheram tomar distância. Sábia escolha.
A chuva aumentava sua intensidade cada vez mais. 

-Eyerin? Elizabeth? Vocês estão bem? - eu as procurei, colocando o braço na frente de minha barriga.

Eu não via nenhuma delas.

-Ela vai nos matar! Precisamos distrair ela! - o garoto carente por atenção disse.

Eles estavam arrastando minhas amigas para longe, carregando-as. Elizabeth se debatia, mas ela era muito fraca para conseguir se libertar sozinha. Já Eyerin... Eu conseguia nitidamente ver o seu medo.
Imperdoável.
As duas meninas sem importância alguma voltaram correndo para o prédio da escola, gritando como desesperadas.
Comecei atrás dos garotos. Eu irei dar uma lição e tanto neles quando pararem de correr.
Notei que o caminho ao qual seguíamos iria acabar nas área das piscinas. Sim, a escola tem uma pequena zona com duas piscinas grandes, rodeada por um conjunto de árvores. Nós nunca a usamos. Há uma lenda sobre um aluno que teria perdido a vida dentro de uma delas e, devido a isso, as piscinas não são mais usadas. Tanto por respeito ao seu espírito, quanto por medo de o incomodar, caso ainda esteja lá. 
Enquanto corria, o céu começou a emitir luzes brancas. A chuva estava muito feia, a ponto de relampear. Eu sentia um péssimo pressentimento.

-PAREM IMEDIATAMENTE! - eu os alertei.

Eu ainda estava dolorida. Por mais que tentasse, não conseguia correr rápido o bastante.
Estranhamente, eles pararam na beira de uma das piscinas. Em seguida, colocaram minhas amigas no chão, mas permaneceram segurando-as pelos ombros. 
Eles estavam me esperando?

-Até que enfim, Maya. Eu já conseguia ver você desmaiada no meio do caminho. - Alejandro falou.

-O negócio de vocês é comigo, deixem elas irem. - protestei.

-Por que deveríamos obedecer você? Sabemos que possui uma arma com você, não é mesmo? - o garoto do cabelo indagou com um sorriso no rosto.

"Estão falando da minha faca de descascar laranja? Eu não posso nem mais comer uma fruta nessa lugar sem ter uma imagem de assassina?!"
Mas... Talvez eu já a tenha usado para ameaçar algum deles. Mas era só ameaça!

-E agora, esse é o nosso passe livre para fugir. - eles começaram a soltar minhas amigas, lentamente.

Fiquei sem reação, não conseguia saber o que planejavam.
E então, eles agiram. Empurraram minhas duas amigas com tudo na piscina. 

-ELIZABETH! EYERIN! - eu corri até a piscina.

Ignorei completamente os garotos. Eles caminharam para longe de mim e começaram a gargalhar.

-DESÇAM LÁ E AS AJUDEM! EYERIN NÃO SABE NADAR! - briguei, revoltada.

-Vá você, Mão de Ferro. - o garoto da camisa sem mangas cruzou seus braços por trás da cabeça.

Eles não pararam de se distanciar.
Na piscina, Eyerin lutava contra a água, sem saber o que fazer. Por sorte, Elizabeth a agarrou, mas o pânico de Eyerin era grande demais, ela estava surtando. Nenhuma das duas saía do lugar.

-VOU DESCER ATÉ VOCÊS! - eu precisava gritar para ser ouvida. 

O barulho da tempestade ocultava minha voz.
As luzes oriundas das nuvens cinzentas aumentavam sua intensidade.
"Como uma tempestade dessas chegou tão rápido?!"

Eu estava pronta para pular, mas fui impedida. Um disparo de eletricidade acertou uma das árvores próximas da piscina. Em resultado, a árvore caiu. 

-Não. - fiz o possível para abafar meu grito.

-M-MAYA! - Eyerin gritou.

A árvore caiu sobre a piscina, exatamente em cima de minhas duas amigas.

-Não...

Nenhuma outra voz era ouvida. O barulho dos trovões e da chuva tomou conta do ambiente. 
Paralisada, eu continuava olhando para a piscina, esperando minhas amigas voltarem. 
Segundos passaram.
Minutos passaram.
Nenhuma das duas retornou à superfície.
Eu pulei na água e procurei por elas.
Mergulhei diversas vezes, retornando logo depois para pegar ar.
O desespero era imenso. Não conseguia pensar, não conseguia ver. Estava completamente dominada pelo desejo de encontrá-las vivas. Porém, quando eu as encontrei... Ambas estavam presas debaixo da árvore. Nenhuma reagia. 
Elas estavam congeladas, sem reação alguma, com seus olhos fechados. 
Tentei puxá-las, tentei salvá-las, tentei empurrar a árvore para longe. Não adiantou.

-Maya! - uma voz chamou, fora da piscina.

Eu a ignorei completamente. Elizabeth e Eyerin não podiam me deixar. Elas prometeram não me deixar!

-Maya! - agora era um coral de vozes.

Ergui-me para fora da água outra vez e prestei virei meu olhar para as pessoas que chamavam. Era um conjunto de professores. 

-Maya... - uma das professoras presentes pasmou.

-Suas amigas...? - agora, um dos professores perguntou, igualmente pasmo.

Voltei a ignorá-los e continuei a mergulhar.
Tchibum!
Alguém entrou na piscina junto comigo. 
Fui agarrada e trazida a superfície, contra a minha vontade.

-PAREM! EU PRECISO SALVÁ-LAS! - o desespero tomou conta de meu ser.

Que sentimento era esse? Eu estava... Com medo?

-Maya... Maya! - os professores insistiram.

-O QUÊ É?! - relutei.

-Elas estão lá em baixo a mais de dez minutos. É tarde demais... - o professor de biologia esclareceu.

-Não importa! Preciso... Preciso...!

Minha voz falhou.
"O quê?"
Eu havia esquecido de retomar meu fôlego. Acabei ficando fraca e perdendo a consciência.


...

Dias passaram.
Semanas passaram.
Em uma manhã, eu acordei e percebi a cruel realidade. Minhas amigas estavam mortas a dois meses. 
Depois do dia de seu enterro duplo, eu não pisei fora de minha casa. Fui isolada por mim mesma. Perdida e sem reação.
Muitos tentaram me ajudar. Meus pais, meus professores, as pessoas do colégio que não me odiavam... Mas nada mais importava. O motivo pelo qual eu ia para qualquer lugar possui nome. Dois nomes. Eyerin e Elizabeth.
A cada dia que passava, a insistência de meus pais aumentava. Eles queriam me ver fora de casa a qualquer custo. Mas, para onde ir? 
Para a escola? Lugar onde quase todos me detestam ou tem medo de mim?
Para as ruas? 
Para um shopping qualquer?
Não havia lugar onde eu me encaixasse.

-Maya, vamos...! - minha mãe batia na porta - Eu sinto muito por suas amigas, mas você precisa de ar puro, precisa seguir em frente!

"Ar puro. Foi para tomar um ar puro que saímos da classe naquele dia."
Fechei meus olhos e me forcei a adormecer.
Horas depois, encontrei-me acordada. Minhas memórias estavam bagunçadas. Imagens sambavam em minha mente, brincando com meu sentido de real e imaginário.
Eu via a sombra de uma mulher refletida em uma poça de água. Parecia tentar falar comigo. Logo depois, vi uma onda batendo contra uma pedra, na praia. As gotas de água respingaram na areia. Meu quarto começou a encharcar. 
Água lotou completamente o lugar, preenchendo-me até o busto. O volume não parava de aumentar. Fiquei submersa.

-NÃO! - gritei, colocando minhas mãos na cabeça.

A água havia sumido. O quarto estava completamente seco.

-Mente, você não vai ganhar de mim. - disse, ofegante. 

Fui para o banheiro e lavei meu rosto.
Sem querer, acabei fixando o olhar em mim mesma, encarando um espelho. O quê eu via com certeza não era belo. 
"O que devo fazer para manter minha sanidade mental?"
Ao pensar isso, minha barriga roncou.
"Eu não como desde ontem. Meus pais ainda não trouxeram comida..."
"Devo sair para comer?"
Voltei para minha cama e tapei meus olhos com as mãos. 

-Talvez eu deva... - suspirei.

Desanimada, troquei meu pijama por uma roupa comum - uma camisa púrpura estampada com uma pequena explosão, nas costas, e uma calça jeans. Não tive vontade de pentear os cabelos, e pouco me importava a opinião alheia.
Respirei fundo e abri a porta de meu quarto. A luz atribuída pelas janelas quase me cegou.
Vasculhei minha casa, em busca de meu pai e de minha mãe. Sem sinal algum deles. Provavelmente estavam trabalhando. Minha mãe é contadora e meu pai professor de matemática. Ambos amam números, ao contrário de mim.
Em cima da mesa, vi algumas notas de dinheiro e uma das chaves de casa. Eu as peguei e saí. 
"Com certeza não vão se importar."
Um pouco insegura, desci as escadas e, logo depois, abri a porta de entrada. 

-O mundo real. - suspirei.

Fechei a porta e a tranquei.
Comecei a caminhar pela calçada, em busca do primeiro fast-food que vendesse hambúrgueres. 
Acima de mim, o céu estava nublado, mas muito claro. Olhar para cima era desafiador. 
Ao meu redor, pessoas conversavam e seguiam seu rumo tranquilamente, despreocupadas. Enquanto isso, eu caminhava incerta de meu caminho. Nem mesmo sabia se era o momento certo para sair. 
"Talvez seja bom voltar..."
Não, já estou aqui. Não me dei ao trabalho de sair de casa para depois voltar de mãos vazias e corpo ainda mais desesperado por alimento.
Avistei uma lanchonete. Silenciosamente, atravessei a rua e entrei. Tentando não olhar para ninguém, entrei na fila. Ao chegar na minha vez, pedi um refrigerante e um hambúrguer - do maior tamanho disponível.
Procurei por um lugar vazio e sentei. Por coincidência, era o canto mais escuro do lugar. O lugar perfeito. 
Comecei a devorar meu lanche. 

-E foi assim que aconteceu, eu juro! - uma voz familiar disse.

Duas vozes riram, em resposta.
"Arg, por quê?"
Olhei para a entrada, disfarçadamente. Os três garotos acabaram de entrar. Alejandro e o desesperado por atenção 1 e 2. 
"Ótimo."
Tentei não prestar atenção neles e comer quieta.
Meu silêncio foi quebrado pelo pior som do mundo. O barulho da chuva. Lá fora, uma porção pequena de gotas de chuva caíam.
"Eu tenho muito azar."
Eu estava a poucas mordidas de transformar meu hambúrguer em um pedaço de nada, quando os três garotos me avistaram.

-Ei, aquela não é a Maya? - um deles disse.

-Ele não vai para a aula desde aquele dia. - Alejandro notou.

Levantei-me e andei na direção da saída.

-Maya? Espera, queremos falar com você! - o número 2 chamou.

Eu o ignorei e bati a porta atrás de mim. Inesperadamente, eles não desistiram e correram atrás de mim. Em resposta, eu corri para longe.

-Saiam de perto de mim, bando de...

Uma moto passou na rua ao meu lado, censurando minhas palavras com o barulho irritante que algumas motos fazem.

-Maya! - Alejandro chamou - Nós só queremos...

Ao meu redor havia uma rua, mais calçada e uma descida coberta por grama. Na tentativa de fugir de seus olhos, realizei a descida. 
Eu devia ter pensado melhor nisso. A chuva havia deixado o chão lamacento. Comecei a escorregar. 
Quando parei de me mover sozinha, eu estava próxima de um pequeno lago. Era a isso que a descida levava, afinal. 
"Eu realmente devia ter pensado melhor."
Porém, notei que eu podia me manter escondida aqui. Engatinhei para perto de um arbusto. Os três garotos continuaram correndo pela calçada.

-Onde ela foi? - um deles perguntou.

-Eu não sei, talvez... - e a partir dessa palavra, não consegui mais ouvir suas vozes.

Relaxei. Eles não estavam mais atrás de mim, mas em compensação eu estava suja de lama. Aproximei-me do lago.

-Não me agrada nem um pouco tocar em você, mas não posso voltar pra casa assim. - mergulhei minha mãos na água, lavando-as.

Em algum momento, senti uma pontada de dor.
"O quê?"
Tirei minhas mãos da água. Meu dedo estava sangrando.
"Como?"
Apertei meus olhos e procurei pelo motivo na água - ela era clara, por sorte. 
Era uma pedra.
Pus a mão na água e a peguei. 
Aparentemente, eu havia raspado meu dedo na pedra e causado o ferimento.

-Nunca vi uma pedra azul... Seria uma safira? 

Eu a analisei de perto, pouco ligando para as gotas de água que me acertavam. 
A pedra possuía um desenho dentro de si, exatamente em seu centro. Lembrava uma gota de chuva.

-O quê é isso? 

E então, minha cabeça começou a doer. 
Minha visão turvou-se. O mundo todo foi coberto por uma cor azul suja, aos meus veres. E então, tudo ao redor desapareceu. Tudo que eu via era água. Ondas de água.
Eu estava de pé, conseguia sentir isso, mas não conseguia ver meu corpo ou mudar meu campo de visão. Tudo que eu via era uma silhueta refletida na água. A silhueta de uma mulher.

-Bem-vinda. 

Sempre que falava a silhueta da mulher tremulava. Sua voz parecia causar perturbações no equilíbrio da água, provocando ondas.

-Você sabe aonde está? 

-Não. Quem é você? 

-Você vai diretamente ao ponto, não é mesmo? - a mulher opinou.

Sua voz era calma e suave.

-Eu não possuo nome. Pode me chamar do que quiser. Nomes não são importantes, afinal. 

-O quê quer comigo? Como fez isso?

-Maya, Maya, Maya... - a silhueta da mulher se moveu, ficando de lado.

Eu agora via seu perfil.

-Você está perdida, sozinha, solitária, com medo... Eu vim ajudar.

-Por que me ajudaria? Não faço ideia de quem você seja, e nunca fiz nada para você.

-Eu sou a Água. O elemento água, minha jovem. - a mulher esclareceu - E eu sinto muito por suas amigas. Elas morreram em meu domínio, então eu acompanhei sua triste história.

"Eyerin... Elizabeth..."

-Eu tenho uma proposta para você. Suas amigas... Quer ver elas novamente? - a voz convidou.

Meu coração quase parou de bater.

-Isso é impossível.

-Não, é possível sim. Para mim. 

Fiquei sem voz.

-Elas morreram em meu domínio. Cada alma que morre em meio aquoso possui ligação direta comigo. Elas ainda não renasceram, então é possível trazê-las de volta.

"Ainda não entendo. Por que está fazendo isso?" pensei, pois não conseguia forças para falar.

-Maya, um dia no futuro, você terá uma importante missão. Você terá novos amigos, e os ajudará a vencer um grande oponente. Isto é, caso consigam vencer. - a mulher expôs - Dentre muitas pessoas, fiquei comovida pelos seus sentimentos por suas amigas. Escolhi você para ser minha representante. Então vou emprestar a você meu poder. 

"Eu não... Entendo..."

-Há uma diversa seleção de pedras ao redor do mundo, minha jovem. Cada uma delas possui um poder especial. Algumas conseguem controlar mentes, outras conseguem mover objetos, outras conseguem criar matérias... Dentre estas pedras, seis recebem destaque.

"Que conversa é essa?"
-Escute, Maya! Um dia fará sentido. - a mulher alertou - Estas seis pedras possuem uma infinidade de poder ligado ao elemento que representam. 

"Pedras elementares?"

-Quase. São chamas de Pedras de Elementra, minha jovem.

"Você...?"

-Sim. Sou a pedra da água, Maya.

"Uma pedra que fala? E, espere, se estão ao redor do mundo... Quais as chances de eu encontrar você?"

-É uma boa questão. Vou responder essa pois gostei de você. As seis pedras possuem propriedades especiais. A pedra da terra gosta de se fixar em um único lugar, e lá ficar até ser encontrada. Mas ela não se deixa pegar tão facilmente. É necessário sobreviver a uma boa luta antes de tirar ela do lugar. - a mulher se moveu novamente, ficando de perfil para o lado oposto - A pedra do vento é volátil. Ela muda de posição uma vez por dia, sendo carregada pelo vento que gera. - sua silhueta tremulava mais a cada palavra - A pedra do fogo gosta de lugares com altas temperaturas, e só pode ser pega, pela primeira vez, por alguém que tenha afinidade com o fogo. Do contrário, seria impossível tocar nela. 

"Eu não estou entendendo muito bem..."

-A pedra da luz e da escuridão são opostas. A pedra da luz aparece para quem julgar ser merecedor de a encontrar, alguém de bom coração, destinado a fazer coisas boas ao mundo. Em contrapartida, a pedra da escuridão... Ela aparece para pessoas de má índole. Enquanto não tocada por alguém, ela se mantém escondida de todas as pessoas puras.

"Então... Uma única pessoa não pode ter todas as pedras?"

-Exatamente! Oh, e quase esqueço da mais importante. A pedra da água. Eu posso ser encontrada em qualquer lugar aquático, contanto que eu queira ser encontrada. Eu estou em todos os lagos, mares, oceanos e rios do mundo. Basta eu querer ser vista.

"Certo... O quê faço para ver minhas amigas novamente?"

-Essa é a parte delicada, Maya... Você não as verá. Elas estarão com você, dentro de você. Não tenho capacidade para criar corpos para elas, mas posso confiar suas almas a você.

Engoli em seco.
"Isso quer dizer..."

-Fundir a alma de vocês, Maya.

"Fundir nossas..."
"Almas..."

-Eu quebrarei uma parte de mim e a entregarei a você. Você será a usuária da gema de água. 

"Gema de água... Um pedaço da pedra da água..."
-Você aprende rápido. Estou contando com você, Maya.

"E quanto ao meu corpo? Vou dividir ele com as duas?"

-Você será vocês três, Maya. Você será Maya, Eyerin e Elizabeth. Seu nome será Merith.

"Merith..."

-Terá de deixar sua família. Esquecerá deles. Sua aparência mudará, também. - a mulher mudou sua postura novamente, ficando cara-a-cara comigo, por mais que eu não conseguisse ver nada além de um corpo de sombras refletido na água - Aceita minha proposta? Eu a guiarei a um lugar onde será aceita por pessoas boas, um lugar onde poderá viver como Merith. Merith Aquaticall Gemini.

"Eu..."


- - - - - - - - - - - 

-Merith, você conseguiu resolver isso? - Gen perguntou.

-O q-quê? E-Eu... - vasculhei por meu caderno - S-Sim!

Gen levantou de seu lugar e parou em minha frente. 

-Eu posso dar uma olhada? Eu não sou muito bom nessa coisa de trigonometria. - ele riu, nervoso.

-C-CLARO! - enrubesci - Digo... - tossi - Pegue.

-Valeu, Merith. - ele virou o caderno para si e começou a analisar minha solução - Hm... Faz sentido.

-O professor pode chegar a qualquer minuto, Gen. - Ingo alertou - Não coloque Merith em problemas!

Gen parou para pensar por um momento.

-Por algum motivo, eu sei que ele vai se atrasar por mais uns dez minutos. 

-Só pode estar brincando! Como pode saber disso? - Ingo questionou.

-Eu não sei. Intuição?

A porta da sala de aula bateu com força. Sakura chegou com um aviso.

-Gente, aparentemente a porta do professor emperrou. Vai demorar tipo dez minutos para tirar ele de lá. 

Nossos colegas vibraram. 

-E então, Ingo? - Gen riu.

-Copie as questões e depois passe para mim. 

As férias de julho haviam acabado. Ingo, Gen, Sakura e eu, por sorte, estamos na mesma classe. Tudo vai muito bem. Eu até mesmo ando com mais harmonia. Não tenho grandes trocas de humor a um tempo.
Tudo corria bem. 

-Hey, que tal irmos lá fora um pouco? - Ingo sugeriu - Está tão quente aqui dentro...

-Ingo, por algum motivo, acho melhor ficarmos por aqui. O professor pode voltar mais cedo... Melhor não arranjar problemas. 

-É... Talvez você tenha razão. - Ingo pensou alto.

...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

[Núcleo Caótico] 00

Núcleo Caótico

0. Humanos e Pyromanos

Em algum lugar distante de nosso mundo, há um país imerso em chamas. Este país é habitado por seres bestiais de múltiplas espécies. Seres ligados ao fogo, às chamas. Tais seres possuem em sua maioria características bestiais. 
Eles variam de forma, gênero e tamanho. 
Eles são intitulados de Pyromanos.
Além disto, todos possuem uma coisa em comum: compartilham da mesma fonte de força e energia. Uma fonte de poder inigualável e semi-infinita. 
Os habitantes deste país a chamam de Núcleo da Chama Demoníaca
É ao redor desta fonte de poder que uma guerra irá se desenvolver, que um humano irá convergir a este mundo e que um habitante deste país flamejante irá descobrir o real motivo do núcleo ser chamado de Demoníaco.

- - - - - - - - -

Zigfriel


Eu caminhava por cima de um chão vulcânico, em um corredor criado a partir de seres de minha espécie que se dispunham a me assistir passar. Cochichos eram ouvidos de todos os lados. Nenhum comentário negativo, é claro. Até porque caso houvesse algum eu estaria autorizado a pará-lo imediatamente, com meus próprios punhos.
Parei de caminhar quando alcancei a presença de nosso imperador. Seu nome era Escaton III. O atual líder do Império Pyromano.
Ele possui as características bestiais mais assustadoras e intimidantes. Digno de nosso líder. Suas costas estão sempre exalando fortíssimos torrentes de fogo, que esconderiam com sucesso suas magníficas asas de morcego, caso elas não fossem gigantescas. Sua cabeça animalesca possui basicamente características humanas, com o adicional de conter três grandes chifres em sua testa, dois olhos dragônicos com pupilas em forma de fenda, uma boca repleta de dentes afiados - destacando seus caninos de tigre dente-de-sabre -, narinas leoninas, orelhas de lobo e pelos que lembram a juba de um leão. Seu peitoral, coberto por músculos altamente desenvolvidos, é exposto a todo momento, declarando assim ser forte o suficiente para não precisar de proteção. Seus braços musculosos possuem características humanas, porém seus dedos exibem garras afiadíssimas. Sua parte inferior é composta pelo corpo de um leão altamente desenvolvido. Alguns o encaixam na classe Centryomano devido a isto (a mistura de centauro, criatura meio homem e meio cavalo, com pyromano). 
Apressei-me em subir os degraus e o reverenciei. 

-Eu, Zigfriel, O Atual Descendente da Linhagem Humyromana, apresento-me para servir. - eu disse, com minha chama interior ardendo de excitação.

-Você, então, é o próximo. - a voz de Escaton III soava forte como um rugido, mas ao mesmo tempo expressava seriedade e controle - O sucessor da linhagem de pyromanos que possuem a aparência humana. 

Eu conseguia sentir seus olhos penetrantes percorrendo por cada centímetro de meu corpo, analisando-me. 

-Levante-se. 

Obedeci imediatamente.

-Siga-me. - Escaton III virou-se e abriu uma porta de tamanho colossal, antes lacrada com runas de fogo protetoras.

Eu o segui. Após passar pela porta, o Imperador à fechou.

-Sabe que sala é esta, jovem guerreiro? 

-Sim, Imperador Escaton III! É a sala por onde se acessa o Núcleo da Chama Demoníaca. - respondi, encarando seus olhos diretamente com a face mais séria possível.

-Sabe o PORQUÊ de eu trazer um mero plebeu como você para este lugar? - sua voz saiu alta como um trovão.

-Irei partir para a missão do qual minha linhagem se encarrega: contatar o Combustível e reacender o Núcleo Demoníaco. Para isto, preciso da benção do atual Imperador e do poder da Chama Demoníaca. 

O Imperador fechou seus olhos por um momento, assentindo.

-Espero que esteja pronto para isto. Não tolerarei falhas. - ele me fitou com seus olhos.

-Eu treinei minha vida inteira para este momento, Imperador Escaton III. Certamente não falharei. De maneira alguma! - eu o respondi seriamente - Estudei o máximo possível sobre os humanos, aprendi todas as 13 técnicas que me foram passadas e planejei um plano de ação para convencer o Combustível a se render a nós.

O Imperador continuou o caminho. Suas patas de leão deixavam marcas chamuscadas no solo de pedra vermelho-sangue. 
Logo, chegamos a uma nova sala. Atravessamos uma pequena ponte de metal sólido que cobria um rio de lava incandescente e acabamos em uma zona metálica de formato circular, rodeada de todos os lados por mais lava. Havia mais três pontes espalhadas ao redor do círculo.
Em seu centro, eu via a cena mais bonita de minha vida.
Dentro de um enorme recipiente de diamante vermelho, o minério mais resistente a fogo existente, estava a Chama Demoníaca. Ela era indescritivelmente majestosa. Seu fogo dançava dentro do recipiente aberto como mil almas fugitivas dentro de uma gaiola. Era possível ver rostos serem formados a partir das labaredas, rostos estes que desapareciam no ar logo após sua formação.
Abaixo do recipiente, havia um dispositivo de metal carbônico - assemelha-se a pedras de carvão, porém metálicas. A aparência do dispositivo era a de um fogão a lenha em formato de barril. Dentro dele, as chamas dançavam igualmente as do recipiente. 
O Imperador aproximou-se do Núcleo.
Eu o acompanhei, empolgado e maravilhado pela bela visão.
Ao olhar para meus pés, reparei pequenos círculos no chão, semelhantes a saídas de ar. Nunca ouvira falar deles.

-Como algo dessa magnitude pode ser considerado fraco? A Chama me parece extremamente forte. - comentei.

-Esta chama está muito fraca, Zigfriel. Quando em seu poder total, a Chama Demoníaca invade todo este salão. - Escaton III explicou-me.

Tentei imaginar a visão esplendorosa da Chama Demoníaca queimando todo o salão. Iluminando cada canto dele com seu calor profano. 
"Espero um dia presenciar este momento."

-Você viu as saídas no solo, correto? 

Assenti.

-Sim, Imperador.

-Há um em cada canto possível deste lugar. Quando o Núcleo da Chama Demoníaca está com sua força total, cada um deles exala um pilar de chamas concentradas. - Escaton III explicou.

Era uma área muito espaçosa mesmo. Sabendo disso, eu agora percebia o quanto o Núcleo estava fraco. Estava muito fraco mesmo.
O Imperador tossiu. Era hora de receber a benção.
Aproximei-me dele e parei a alguns passos de distância. Abaixei-me, então.

-Técnica derradeira: Espírito de fogo. - o Imperador conjurou.

Meus olhos estavam fechados, mas ainda assim captavam uma forte luz logo a minha frente. Ela me aquecia e me envolvia lentamente.

-Zigfriel, Descendente da Linhagem Humyromana. Neste momento, eu, Escaton III, concedo a você o poder da Chama Demoníaca. Deixe-a possuí-lo. Deixe-a consumi-lo. Use deste poder com habilidade, força, inteligência e destreza para que os pyromanos possam novamente ASCENDER! 

Pela primeira vez na vida, eu sentia incômodo ao ser rodeado por fogo. Abri meus olhos e me levantei. Escaton III estava de braços abertos. As chamas contidas no Núcleo se levantavam até o teto. Meu corpo era queimado por completo. 
E isso, estranhamente, doía. 
Comecei a gritar de dor. Abaixei-me e abracei meu próprio corpo com a maior força possível, enquanto gritava para diminuir minha sensação de sofrimento.

-Técnica de benção: Queimadura do Inferno.

Meus olhos estavam prestes a saltar das órbitas. Meu corpo foi curvado contra a minha vontade. Neste momento, Imperador Escaton III tocou uma das vértebras de minha espinha dorsal. Uma sensação emergente de calor invadiu meu corpo. Eu estava superaquecido. 
Feito isso, o Imperador caminhou pelo mesmo caminho do qual entramos.

-Ao fim da benção, sua missão começará. Não direi boa sorte, pois não contamos com sorte neste Império. Você irá realizar sua tarefa de vida.

-S-SIM! - respondi com dificuldade.

Minhas costas queimavam. Meus olhos se fechavam. Meu corpo paralisou. Minha consciência desabou.


...

Lentamente, abri meus olhos. Eu obviamente não estava na sala do Núcleo da Chama Demoníaca. A linda visão dele sumira. Em seu lugar, eu encarava algo nunca antes visto. Algo verde

-Espere. Isso é... grama? Grama VERDE? 

Levantei-me. Eu estava cercado de grama, mas não grama cinza e ressecada. O que eu via era grama verde e viva. 
Eu havia chegado ao mundo humano.
Este é o local onde minha missão será iniciada. 
Uma vez a cada cinco séculos, a Chama Demoníaca contida dentro do Núcleo se torna fraca. Quando isso acontece, o descendente atual da linhagem Humyromana, no caso eu, precisa ir para o mundo humano. 
Mas, por que é necessário pertencer a linhagem?
Pyromanos são criaturas com aspectos humanos e bestiais. Só há um representante pyromano por geração cuja aparência se assemelha a de um humano normal. 
E cada vez que a Chama enfraquece, este representante é mandado para o mundo humano. Como não possui forma de humano misturado com animal, é muito mais fácil para um Humyromano interagir e completar a missão.
A missão é encontrar o Combustível da Chama Demoníaca.
Há uma distorção no mundo dos humanos ligada diretamente ao Núcleo. Sempre que a Chama perde seu poder, é porque um humano nasceu com sua essência. A Essência da Chama Demoníaca. 
Nós chamamos este ser humano de Combustível. 
Quando este ser humano entrar em contato com o Núcleo, ele irá doar sua essência para ele, reacendendo a Chama com todo o seu poder e esplendor no máximo possível. Porém, para isso ocorrer é necessário cumprir duas exigências.
Primeiramente, o Combustível precisa concordar em fazer isto.
Em sequência, ele precisa ter realizado o seu maior sonho. 
Quando seu maior sonho, seu desejo mais profundo, é atendido, a essência é ativada por inteira. Nesse estado, o Combustível está apto para reacender o Núcleo.
Meu trabalho é basicamente este. Encontrar o Combustível, traze-lo para o meu lado e realizar seu desejo, seja ele qual for.

-Certo, aonde estou? 

Observei os arredores. Eu estava em um gramado, rodeado por árvores. Só havia uma trilha para seguir. Obviamente, eu fiz seu percurso. 
No caminho, reparei em minhas roupas. Elas haviam sido trocadas. Eu vestia agora, no lugar de meu uniforme militar, uma roupa colegial humana nas cores vermelho e preto. Havia uma gravata apertando meu pescoço. Eu a odiei a partir do momento em que percebi sua existência.
"Os alfaiates imperiais devem ter cuidado de minha aparência, para me adequar a este lugar" pensei.
Notei outra diferença: minhas unhas haviam sido cortadas. Normalmente, elas seriam afiadas. Agora elas estavam lisas e nem um pouco letais. 
Ao sair da mata fechada, vi um monte de humanos em uma espécie de ritual de grupo. Um grande grupo formava um círculo, enquanto dois interagiam no meio. Aproximei-me.

-BRIGA! BRIGA! BRIGA! - eles gritavam, eufóricos.

"Oh, deve ser como no Império Pyromano! O ritual onde o mais forte toma posse da área e demarca seu território. Não sabia que eles eram tão avançados."
Um grande som de batida foi emitido. Fiquei interessado.
"Um deles deve ser o Combustível!"
Por ser mais alto que a maioria - cerca de um metro e noventa de altura -, consegui assistir a todo o combate. Um jovem e robusto humano grandalhão deu um soco muito forte em um rapaz magricelo de cabelos negros. O golpe foi tão poderoso que o rapaz saiu voando para trás, batendo por fim em uma parede. 
Após o término do confronto, a multidão se dissipou. Cada um foi para um lado diferente, alguns formando pequenos grupos. 
Assumindo meu papel, comecei um diálogo com o vencedor.

-Você mandou muito bem ali. - elogiei.

O humano me encarou por cima do ombro, com uma expressão séria. Seus olhos eram verdes e seu cabelo poderia ser classificado como "loiro escuro". Ele usava um uniforme semelhante ao meu, porém sem mangas e gravata.
"Foi previsto que o Combustível possui o nome Lanoff. Vou perguntar diretamente." planejei mentalmente.

-Seu nome por acaso seria Lanoff? 

Ele olhou para seus dois amigos. Todos eram encorpados, embora de maneiras diferentes. Um era mais gordo, encorpado para os lados, enquanto o outro era mais alto, encorpado para cima. O humano com quem eu falava era uma mistura saudável dos dois.
O mais gordo possuía muitas sardas em seu rosto e seu nariz parecia o focinho de um porco. Seus olhos eram pequenos e escuros, enquanto seu cabelo era castanho claro. Em contrapartida, o mais alto possuía o corpo mais magro entre nós quatro. Seu cabelo era extremamente curto e castanho e possuía olhos da mesma cor.
Todos começaram a rir.

-Se está procurando aquele idiota desligado, ele está atirado bem ali. - o mais alto apontou.

E os três saíram, rindo. Acabei ficando sozinho, falando com o ar. Eu não gostei nem um pouco disto. 
"Eu podia incinerá-los por tamanho desrespeito!"
Mas era necessário focar na missão.
Corri até o garoto deitado no chão. 
"ESTE é o Combustível?"
Deitado à minha frente estava o garoto magrelo que levou um soco estrondoso diretamente na barriga. Sua pele era incrivelmente pálida. Seus olhos castanho-claro estavam cobertos por uma espécie de objeto com duas lentes. Acho que os humanos chamam isso de óculos

-Com licença, qual é seu nome?

Ele levantou sua cabeça devagar, coberta de cabelos lisos castanho-escuro, no momento desgrenhados. Em seguida, ele arrumou a armação de seus óculos e me fitou, tentando me reconhecer, provavelmente.
Através das lentes, eu via meu reflexo. Meu cabelo, ruivo como fogo, estava bagunçado e meus olhos alaranjados pareciam mais vivos do que nunca. 
"O poder da Chama me modificou até fisicamente. Consigo notar!"

-Meu nome é Ezekiel.

"Ufa. O humano deve ter cometido um engano."

-Ezekiel Lanoff, aliás. - ele completou.

Sua expressão era do mais absoluto vazio.
"É ele." engoli em seco.

-E quem é você? - ele questionou.

Não respondi. Precisava pensar em como reagir. Deveria dizer meu nome?
Ele usava um uniforme idêntico ao meu. Caso isto fosse uma escola, eu não precisaria ter um nome matriculado nela?
Minha cabeça começou a aquecer. Acabei falando sem pensar.

-Eu sou Zigfriel, O Desc... - mordi minha língua para parar - Zigfriel Humyroni. É, isso.

Ezekiel refletiu consigo mesmo sobre isso.

-Muito bem, até mais. - ele deu a volta e saiu andando.

Enquanto caminhava, ele espantava a sujeira de sua roupa.
Pasmo, eu caminhei até ele.

-Que história é essa?! Pergunta meu nome e depois vai embora sem explicação?! - rosnei.

Percebi então meu erro. Tratando-se do Combustível, eu precisava ao menos tentar ser gentil, ou então ele poderia se afastar de mim. Isso não podia acontecer.
Mas, estranhamente, ele não se assustou. Agiu da mesma maneira que agia antes.

-O quê eu tenho haver com isso? Você perguntou meu nome. Refiz a pergunta por mera educação. Não é como se eu me importasse com você ou te conhecesse. - ele deu de ombros e colocou as mãos nos bolsos de sua calça.

-É assim que você trata desconhecidos? Como pretende fazer amigos desse jeito?! 

Ele revirou os olhos.

-E quem disse que eu preciso? Eu tô de boa. Agora, caso permita, preciso ir para casa. - e voltou a andar.

Ao passar por um arbusto, abaixou-se e pegou uma mochila. Deu leves tapinhas nela para espantar a sujeira e continuou seu trajeto.
Indignado, eu o segui.

-Lanoff, parado! - eu disse.

-Sim?

-Posso ir para casa com você? Há um assunto de extrema importância pendente entre mim e você. 

Ele olhou para o céu, provavelmente pensando. 
O azul do céu praticamente não existia. O dia estava completamente nublado. A camada cinza de nuvens bloqueava o céu e o sol.
Eu já ouvi falar sobre nuvens brancas e céu azul antes. No Império Pyromano, a cor do céu varia sempre de laranja para vermelho, nunca azul. Mas eu estudara sobre isso em algum dos livros sobre a vida humana e seu mundo.

-Não. - ele respondeu e depois voltou a caminhar.

Ele tirou de um dos bolsos um amontoado de fios. Com os dedos da mão direita, começou a brincar de desamarrá-los.

-Não!? Por que não?! - questionei.

-Eu não conheço você, só sei seu nome. Não levo estranhos para casa.

Suas palavras faziam total sentido.

-Mas, caso insista tanto, pode vir. Eu não me importo mesmo. Você é aluno transferido, não é mesmo? - com sua mão esquerda, ele agora mexia em um aparelho retangular eletrônico.

"Passo um, completo!"

-Sim, isso mesmo, sou um aluno transferido de...

Eu falava sozinho. Ezekiel Lanoff já andava longe de mim.
Corri para alcançá-lo. 
Resolvi esperar para contar a verdade quando chegasse em sua casa. Com isso em mente, caminhei quieto até chegarmos em sua residência. Ele morava em um prédio de aproximadamente nove andares.

-Você faz parte da nobreza, não é mesmo? Ou seu pai deve ser um burguês muito rico. Acertei?

Ele pegou a chave e abriu o portão da entrada. 

-Disse alguma coisa? - ele tirou o aparelho acoplado ao amontado de fios dos ouvidos.

"Eu notei tantas coisas diferentes dos livros. O quê está acontecendo?"

-Por aqui. - Ezekiel Lanoff guiou, guardando seus apetrechos.

Paramos na frente de outra porta. Ele a abriu e nós entramos. 

-Chegamos em sua casa? 

-Não. Suba as escadas primeiro. - ele apontou para uma série de degraus.

Subi marchando, firme. Disciplina é algo importante para um militar do exército pyromano.
Em algum momento, Ezekiel Lanoff passou a minha frente e pôs a chave dentro da fechadura da última porta pela qual passaríamos.

-Eu não costumo receber convidados, então não há motivos para a casa estar limpa. Esteja ciente disso. 

"Desordem dentro das casas não é um sinal de boa vida para os humanos? Eles têm algumas concepções tão estranhas..." 
A porta se abriu. Ezekiel Lanoff fez um sinal para que eu entrasse primeiro.
Sem questionar ou hesitar, prossegui. A sala aonde eu agora estava era completamente escura. Não conseguia notar janela alguma e não sabia aonde estaria os interruptores. 
Ezekiel Lanoff adentrou a sala e fechou a porta. Por um estranho momento, fiquei sozinho em uma sala escura com o Combustível. No minuto seguinte, as luzes foram acesas. 

-Este é meu lar. Não digo para se sentir a vontade, mas tem minha permissão para permanecer vivo neste espaço. - Ezekiel Lanoff pôs sua mochila em cima de uma mesa.

Aquilo não era uma sala de estar, como eu imaginava. Era o quarto de Ezekiel Lanoff. E, como ele mencionou a pouco, não era um exemplo de limpeza e organização. Não importa para onde eu olhasse, havia roupas jogadas, provavelmente sujas. Eu vi peças de roupa masculinas que um homem não deveria ver, além das suas próprias.
Fora isso, e as demais embalagens jogadas, eu via um área surpreendentemente limpa. A única, aliás. Nesta área, eu via um gigantesco monitor de televisão. Ele era tão grande que cobria uma parte imensa da parede. Próximo a ele, havia uma cadeira acolchoada de rodinhas. Sua coloração era preta, e além disso era reclinável. Logo a sua frente haviam controles com formatos estranhos e um teclado. Próximo a estes itens, havia a cama de Ezekiel Lanoff. Ela estava totalmente bagunçada e vários objetos haviam sido jogadas em cima dela, como cadernos e roupas, estas pareciam limpas.
Nos cantos do quarto eu via mais três portas. Provavelmente uma era do banheiro e outra da cozinha.

-Realizou seu sonho? - Ezekiel Lanoff perguntou.

"Seria isto um resquício dos costumes pyromanos? Manter organizado e limpo somente o essencial para a vida?" refleti em minha mente.
"Embora eu não entenda o motivo de endeusar uma cadeira e uma televisão..."

-Ótimo. - Ezekiel Lanoff retirou sua gravata com cuidado e a jogou em sua cama.

Logo após, ele sentou em sua cadeira reclinável e soltou um longo suspiro.

-O que vai fazer? - perguntei, aproximando-me.

-Viver. Algo que não acontece lá fora. - ele apertou o botão central de um aparelho retangular próximo.

-Não entendo.

-Sua presença não vai me impedir de fazer o que sempre faço. Pode ir embora, pode ficar, eu realmente não ligo. 

Comecei a duvidar sobre a previsão do sobrenome Lanoff. Ele não parecia ter a Essência da Chama Demoníaca em si. Seria melhor dizer tudo para ele de uma vez e tirar a prova? 
Sim. É isso que farei.

-Eu preciso debater com você sobre um assunto importante. - me interpus entre ele e o monitor, este agora emitindo um brilho azul.

-Fala.

-Meu nome é Zigfriel, O Descendente da Linhagem de Humyromanos. Eu vim do longínquo Império Pyromano com a missão de restaurar o poder da Chama Demoníaca. 

"Ele provavelmente irá se assustar. Devo ficar preparado para o conter."

-Tá, e...?

Quase despenquei para trás.
"Como assim?! Ele nem duvidou?! Qual o problema dele?!"

-No momento em que se encontra um ruivo de olhos de fogo, é fácil perceber que ele gosta desse elemento. Aos meus veres, nesse momento, você é um viciado em RPG que aderiu tanto ao jogo que agora nem se considera mais humano. 

-O quê?

-Você deve ter descoberto sobre minha identidade real de alguma maneira e veio correndo até mim na esperança que eu fizesse parte de sua guilda. Mas não, obrigado. Eu jogo sozinho. 

Boquiaberto, protestei:

-Eu não faço ideia do que você está falando. Só escute o que tenho a dizer!

Ele não se moveu, tampouco tirou os olhos de mim. Prossegui.

-Você nasceu com uma característica especial. Se chama Essência da Chama Demoníaca. Assim sendo, fui enviado pelo povo pyromano para atender o maior desejo da sua vida. Em troca, você deve vir comigo e reacender o nosso Núcleo. Parece bom para mim, e quanto para você? 

Ele permaneceu quieto por um tempo. 
Após seu momento de pensamento, ele respondeu minha requisição:

-Eu não possuo desejos. Muito menos acredito nessa sua história.

"Certo, terei de comprovar" bufei.

-Preste atenção. - pedi.

Caminhei para o centro de seu quarto. Ezekiel Lanoff simplesmente rodou sua cadeira, e parece gostar disso.

-Segunda técnica de invocação: Espada-dupla flamejante! - conjurei.

Concentrei meu espírito e minha essência. Canalizei o poder da Chama Demoníaca concedido a mim diretamente pelo Imperador. Após esta preparação, invoquei duas espadas afiadas flamejantes. Suas lâminas curvavam para cima e possuíam uma coloração vulcânica. O símbolo pyromano era destacado na ligação entre o punho e a lâmina - um brasão em formato de escudo exibindo uma chama.

-Isso é prova suficiente?

"Desculpe assustar você, mas foi sua escolha não acreditar em mim."

-Maneiro. - ele disse.

Quase caí para trás novamente. 
"COMO ASSIM?! Ele não está assustado?!"
Dissipei as espadas e respirei fundo várias vezes. Faltava bem pouco para entrar em fúria. Caso isso acontecesse, os resultados não seriam bons.

-Tem mais algum truque? - ele aplaudiu.

"Qual o problema desse humano?"
Decidi entregar todo o jogo de uma vez. 

-O povo pyromano possui aspectos humanos e bestiais. Como sou da linhagem Humyromana, sou o mais próximo de um humano. Não possuo característica bestial alguma, além de minhas unhas. Mas como pode ver, elas foram cortadas para se adequar aos padrões humanos. - expliquei.

Agora, Ezekiel Lanoff parecia interessado.
Eu expliquei para ele sobre o Núcleo - sobre como o seu poder mantem o Império e permite a todos os pyromanos usarem suas habilidades e técnicas, colocando assim o Império em um status de hegemonia em relação aos demais. Expliquei também sobre ele ser o Combustível, e a condição, junto do motivo, para realizar sua função.
Após a explicação, ele não pareceu surpreso, nem confuso, nem incomodado. Permanecia com a mesma face de sempre.

-Certo. Eu não tenho desejo algum, então podemos acender o fogo malvado lá. - ele se levantou.

-Você precisa realizar seu desejo. Nesse estado, nunca conseguirá reacender a Chama Demoníaca! Vamos! Isso tudo é vergonha de me contar, é? Talvez você queira uma garota, afinal? - soltei gargalhadas maliciosas acidentalmente, sendo levado pelo momento.

A reação do Combustível não foi bem como a esperada.

-Eu não possuo interesses amorosos, não possuo vida social e não possuo amigos. - ele disse, sério - Minha vida é este quarto. Concordei com você por mera vontade de ajudar alguém, para variar, mas é só isso. Não há desejo algum. Minha vida já está perfeita como está. Só gostaria de não precisar mais sair daqui, mas isso é impossível. Então, vamos? Acender o fogo profano ou coisa assim.

"Não estou gostando disso. Esse temperamento... Essa personalidade... Não bate com a de alguém que possui a Essência. Preciso ter uma prova."

-Antes disso, preciso descobrir se você possui mesmo a Essência. 

Ele voltou a sentar em sua cadeira. Parecendo entediado, ele abraçou suas pernas e começou a girar.

-Você, por acaso, não teria energia demais para um humano normal? - indaguei.

Ele parou o movimento de rotação.

-Possuo uma doença única, variante da hiperatividade. Toda noite antes de dormir, eu faço trinta flexões e cem polichinelos. Caso esses exercícios não sejam feitos, eu acabo não conseguindo dormir, pois recebo uma carga de energia extra. Sou hiperativo, basicamente. Isso conta? - ele ajeitou seus óculos.

"Droga, ele possui a energia. Hora da segunda prova!" mordi meu lábio, torcendo para ser o humano errado.
Saí do centro da sala e caminhei um pouco. Escorei-me na parede e voltei a falar.

-Seres que carregam a Essência, assim como você, supostamente, e os pyromanos, possuem sangue quente. O mesmo acontece com sua saliva e suor. 

Ezekiel Lanoff estremeceu. 

-Eu não gosto de suar. - ele rangeu os dentes.

-Eu nunca disse que iria. - vasculhei meus bolsos. Por sorte, encontrei um canivete. - Aqui está. - eu o estendi para ele - Corte algum lugar seu que não doa. Pode só furar a ponta do dedo, já basta. 

Seu olhar demonstrava pouca afinidade à esta ideia.

-O quê foi? - perguntei.

Ele se levantou devagar, murmurando para si mesmo. Ameaçadoramente, começou a se aproximar de mim.

-Qual o problema? 

Ele segurou meu ombro esquerdo com sua mão, usando a segunda para apoiar-se na parede, prendendo-me.

-Saliva, suor ou sangue, foram essas opções, certo?

Eu assenti, desconfiado.

-Eu não estou disposto a suar. Sinto o mesmo pelo sangue. Acho a saliva o meio mais válido. - ele fitou meus olhos.

"Por que ele está fazendo uma voz sedutora? O quê esse humano tem na cabeça?!"

-O que INFERNOS você está PENSANDO EM FAZER? - revoltei-me.

-Como eu disse antes, não possuo amigos ou vida amorosa, muito menos vida social. Ou seja, não há motivo para ter gosto por algum gênero. Você quer provar minha saliva, certo? Acho que cuspir em você será muito mais nojento.

"Esse cara quer me BEIJAR?!" 
Ele começou a aproximar seu rosto do meu.
Chutei sua barriga com força, empurrando-o para o outro lado do quarto. Ele caiu em uma pilha de roupas e sacos de batatas fritas. Ele levantou logo em seguida, como se nada houvesse acontecido. 
Ele tem sorte por eu ter controlado minha força.

-Nunca mais tente fazer algo assim comigo. OUVIU BEM, EZEKIEL LANOFF?? - gritei, enraivecido.

-Pra quê tanta cerimônia? Me chame de Ezekiel. Na vida decente, chamam-me de Ezek. - ele girou seu pescoço, estalando suas juntas - E então, qual o próximo passo?

"Não tem jeito. Preciso assumir ele como o atual Combustível."
Com a cabeça fervendo de raiva, e tentando superar a situação assustadora que acabara de acontecer, eu declarei:

-Ezek, eu vou arranjar um sonho para você e cumpri-lo. Pelo povo pyromano! - ergui minha mão, em honra à meu povo.

-Avise quando acabar.

Ezekiel estava deitado em sua cadeira, mexendo freneticamente um dos controles em sua mão, com os olhos vidrados no monitor. Ele assistia um humano atirar sem parar com uma arma altamente letal.

-VOCÊ NEM ESTÁ PRESTANDO ATENÇÃO!

"É com esse cara que passarei as próximas semanas?"
Observei o meu arredor mais uma vez. Finalmente encontrei as janelas. Elas eram cobertas por pesadas cortinas pretas. Impedindo assim a luz do sol.
"Aguente, Zigfriel. Depois disso, será louvado para sempre."
"Embora... Caso eu falhe, eu serei vaiado por toda a minha vida, e provavelmente decapitado."
"É, vai dar tudo certo. Sem pressão alguma."