quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

[Núcleo Caótico] 00

Núcleo Caótico

0. Humanos e Pyromanos

Em algum lugar distante de nosso mundo, há um país imerso em chamas. Este país é habitado por seres bestiais de múltiplas espécies. Seres ligados ao fogo, às chamas. Tais seres possuem em sua maioria características bestiais. 
Eles variam de forma, gênero e tamanho. 
Eles são intitulados de Pyromanos.
Além disto, todos possuem uma coisa em comum: compartilham da mesma fonte de força e energia. Uma fonte de poder inigualável e semi-infinita. 
Os habitantes deste país a chamam de Núcleo da Chama Demoníaca
É ao redor desta fonte de poder que uma guerra irá se desenvolver, que um humano irá convergir a este mundo e que um habitante deste país flamejante irá descobrir o real motivo do núcleo ser chamado de Demoníaco.

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Zigfriel


Eu caminhava por cima de um chão vulcânico, em um corredor criado a partir de seres de minha espécie que se dispunham a me assistir passar. Cochichos eram ouvidos de todos os lados. Nenhum comentário negativo, é claro. Até porque caso houvesse algum eu estaria autorizado a pará-lo imediatamente, com meus próprios punhos.
Parei de caminhar quando alcancei a presença de nosso imperador. Seu nome era Escaton III. O atual líder do Império Pyromano.
Ele possui as características bestiais mais assustadoras e intimidantes. Digno de nosso líder. Suas costas estão sempre exalando fortíssimos torrentes de fogo, que esconderiam com sucesso suas magníficas asas de morcego, caso elas não fossem gigantescas. Sua cabeça animalesca possui basicamente características humanas, com o adicional de conter três grandes chifres em sua testa, dois olhos dragônicos com pupilas em forma de fenda, uma boca repleta de dentes afiados - destacando seus caninos de tigre dente-de-sabre -, narinas leoninas, orelhas de lobo e pelos que lembram a juba de um leão. Seu peitoral, coberto por músculos altamente desenvolvidos, é exposto a todo momento, declarando assim ser forte o suficiente para não precisar de proteção. Seus braços musculosos possuem características humanas, porém seus dedos exibem garras afiadíssimas. Sua parte inferior é composta pelo corpo de um leão altamente desenvolvido. Alguns o encaixam na classe Centryomano devido a isto (a mistura de centauro, criatura meio homem e meio cavalo, com pyromano). 
Apressei-me em subir os degraus e o reverenciei. 

-Eu, Zigfriel, O Atual Descendente da Linhagem Humyromana, apresento-me para servir. - eu disse, com minha chama interior ardendo de excitação.

-Você, então, é o próximo. - a voz de Escaton III soava forte como um rugido, mas ao mesmo tempo expressava seriedade e controle - O sucessor da linhagem de pyromanos que possuem a aparência humana. 

Eu conseguia sentir seus olhos penetrantes percorrendo por cada centímetro de meu corpo, analisando-me. 

-Levante-se. 

Obedeci imediatamente.

-Siga-me. - Escaton III virou-se e abriu uma porta de tamanho colossal, antes lacrada com runas de fogo protetoras.

Eu o segui. Após passar pela porta, o Imperador à fechou.

-Sabe que sala é esta, jovem guerreiro? 

-Sim, Imperador Escaton III! É a sala por onde se acessa o Núcleo da Chama Demoníaca. - respondi, encarando seus olhos diretamente com a face mais séria possível.

-Sabe o PORQUÊ de eu trazer um mero plebeu como você para este lugar? - sua voz saiu alta como um trovão.

-Irei partir para a missão do qual minha linhagem se encarrega: contatar o Combustível e reacender o Núcleo Demoníaco. Para isto, preciso da benção do atual Imperador e do poder da Chama Demoníaca. 

O Imperador fechou seus olhos por um momento, assentindo.

-Espero que esteja pronto para isto. Não tolerarei falhas. - ele me fitou com seus olhos.

-Eu treinei minha vida inteira para este momento, Imperador Escaton III. Certamente não falharei. De maneira alguma! - eu o respondi seriamente - Estudei o máximo possível sobre os humanos, aprendi todas as 13 técnicas que me foram passadas e planejei um plano de ação para convencer o Combustível a se render a nós.

O Imperador continuou o caminho. Suas patas de leão deixavam marcas chamuscadas no solo de pedra vermelho-sangue. 
Logo, chegamos a uma nova sala. Atravessamos uma pequena ponte de metal sólido que cobria um rio de lava incandescente e acabamos em uma zona metálica de formato circular, rodeada de todos os lados por mais lava. Havia mais três pontes espalhadas ao redor do círculo.
Em seu centro, eu via a cena mais bonita de minha vida.
Dentro de um enorme recipiente de diamante vermelho, o minério mais resistente a fogo existente, estava a Chama Demoníaca. Ela era indescritivelmente majestosa. Seu fogo dançava dentro do recipiente aberto como mil almas fugitivas dentro de uma gaiola. Era possível ver rostos serem formados a partir das labaredas, rostos estes que desapareciam no ar logo após sua formação.
Abaixo do recipiente, havia um dispositivo de metal carbônico - assemelha-se a pedras de carvão, porém metálicas. A aparência do dispositivo era a de um fogão a lenha em formato de barril. Dentro dele, as chamas dançavam igualmente as do recipiente. 
O Imperador aproximou-se do Núcleo.
Eu o acompanhei, empolgado e maravilhado pela bela visão.
Ao olhar para meus pés, reparei pequenos círculos no chão, semelhantes a saídas de ar. Nunca ouvira falar deles.

-Como algo dessa magnitude pode ser considerado fraco? A Chama me parece extremamente forte. - comentei.

-Esta chama está muito fraca, Zigfriel. Quando em seu poder total, a Chama Demoníaca invade todo este salão. - Escaton III explicou-me.

Tentei imaginar a visão esplendorosa da Chama Demoníaca queimando todo o salão. Iluminando cada canto dele com seu calor profano. 
"Espero um dia presenciar este momento."

-Você viu as saídas no solo, correto? 

Assenti.

-Sim, Imperador.

-Há um em cada canto possível deste lugar. Quando o Núcleo da Chama Demoníaca está com sua força total, cada um deles exala um pilar de chamas concentradas. - Escaton III explicou.

Era uma área muito espaçosa mesmo. Sabendo disso, eu agora percebia o quanto o Núcleo estava fraco. Estava muito fraco mesmo.
O Imperador tossiu. Era hora de receber a benção.
Aproximei-me dele e parei a alguns passos de distância. Abaixei-me, então.

-Técnica derradeira: Espírito de fogo. - o Imperador conjurou.

Meus olhos estavam fechados, mas ainda assim captavam uma forte luz logo a minha frente. Ela me aquecia e me envolvia lentamente.

-Zigfriel, Descendente da Linhagem Humyromana. Neste momento, eu, Escaton III, concedo a você o poder da Chama Demoníaca. Deixe-a possuí-lo. Deixe-a consumi-lo. Use deste poder com habilidade, força, inteligência e destreza para que os pyromanos possam novamente ASCENDER! 

Pela primeira vez na vida, eu sentia incômodo ao ser rodeado por fogo. Abri meus olhos e me levantei. Escaton III estava de braços abertos. As chamas contidas no Núcleo se levantavam até o teto. Meu corpo era queimado por completo. 
E isso, estranhamente, doía. 
Comecei a gritar de dor. Abaixei-me e abracei meu próprio corpo com a maior força possível, enquanto gritava para diminuir minha sensação de sofrimento.

-Técnica de benção: Queimadura do Inferno.

Meus olhos estavam prestes a saltar das órbitas. Meu corpo foi curvado contra a minha vontade. Neste momento, Imperador Escaton III tocou uma das vértebras de minha espinha dorsal. Uma sensação emergente de calor invadiu meu corpo. Eu estava superaquecido. 
Feito isso, o Imperador caminhou pelo mesmo caminho do qual entramos.

-Ao fim da benção, sua missão começará. Não direi boa sorte, pois não contamos com sorte neste Império. Você irá realizar sua tarefa de vida.

-S-SIM! - respondi com dificuldade.

Minhas costas queimavam. Meus olhos se fechavam. Meu corpo paralisou. Minha consciência desabou.


...

Lentamente, abri meus olhos. Eu obviamente não estava na sala do Núcleo da Chama Demoníaca. A linda visão dele sumira. Em seu lugar, eu encarava algo nunca antes visto. Algo verde

-Espere. Isso é... grama? Grama VERDE? 

Levantei-me. Eu estava cercado de grama, mas não grama cinza e ressecada. O que eu via era grama verde e viva. 
Eu havia chegado ao mundo humano.
Este é o local onde minha missão será iniciada. 
Uma vez a cada cinco séculos, a Chama Demoníaca contida dentro do Núcleo se torna fraca. Quando isso acontece, o descendente atual da linhagem Humyromana, no caso eu, precisa ir para o mundo humano. 
Mas, por que é necessário pertencer a linhagem?
Pyromanos são criaturas com aspectos humanos e bestiais. Só há um representante pyromano por geração cuja aparência se assemelha a de um humano normal. 
E cada vez que a Chama enfraquece, este representante é mandado para o mundo humano. Como não possui forma de humano misturado com animal, é muito mais fácil para um Humyromano interagir e completar a missão.
A missão é encontrar o Combustível da Chama Demoníaca.
Há uma distorção no mundo dos humanos ligada diretamente ao Núcleo. Sempre que a Chama perde seu poder, é porque um humano nasceu com sua essência. A Essência da Chama Demoníaca. 
Nós chamamos este ser humano de Combustível. 
Quando este ser humano entrar em contato com o Núcleo, ele irá doar sua essência para ele, reacendendo a Chama com todo o seu poder e esplendor no máximo possível. Porém, para isso ocorrer é necessário cumprir duas exigências.
Primeiramente, o Combustível precisa concordar em fazer isto.
Em sequência, ele precisa ter realizado o seu maior sonho. 
Quando seu maior sonho, seu desejo mais profundo, é atendido, a essência é ativada por inteira. Nesse estado, o Combustível está apto para reacender o Núcleo.
Meu trabalho é basicamente este. Encontrar o Combustível, traze-lo para o meu lado e realizar seu desejo, seja ele qual for.

-Certo, aonde estou? 

Observei os arredores. Eu estava em um gramado, rodeado por árvores. Só havia uma trilha para seguir. Obviamente, eu fiz seu percurso. 
No caminho, reparei em minhas roupas. Elas haviam sido trocadas. Eu vestia agora, no lugar de meu uniforme militar, uma roupa colegial humana nas cores vermelho e preto. Havia uma gravata apertando meu pescoço. Eu a odiei a partir do momento em que percebi sua existência.
"Os alfaiates imperiais devem ter cuidado de minha aparência, para me adequar a este lugar" pensei.
Notei outra diferença: minhas unhas haviam sido cortadas. Normalmente, elas seriam afiadas. Agora elas estavam lisas e nem um pouco letais. 
Ao sair da mata fechada, vi um monte de humanos em uma espécie de ritual de grupo. Um grande grupo formava um círculo, enquanto dois interagiam no meio. Aproximei-me.

-BRIGA! BRIGA! BRIGA! - eles gritavam, eufóricos.

"Oh, deve ser como no Império Pyromano! O ritual onde o mais forte toma posse da área e demarca seu território. Não sabia que eles eram tão avançados."
Um grande som de batida foi emitido. Fiquei interessado.
"Um deles deve ser o Combustível!"
Por ser mais alto que a maioria - cerca de um metro e noventa de altura -, consegui assistir a todo o combate. Um jovem e robusto humano grandalhão deu um soco muito forte em um rapaz magricelo de cabelos negros. O golpe foi tão poderoso que o rapaz saiu voando para trás, batendo por fim em uma parede. 
Após o término do confronto, a multidão se dissipou. Cada um foi para um lado diferente, alguns formando pequenos grupos. 
Assumindo meu papel, comecei um diálogo com o vencedor.

-Você mandou muito bem ali. - elogiei.

O humano me encarou por cima do ombro, com uma expressão séria. Seus olhos eram verdes e seu cabelo poderia ser classificado como "loiro escuro". Ele usava um uniforme semelhante ao meu, porém sem mangas e gravata.
"Foi previsto que o Combustível possui o nome Lanoff. Vou perguntar diretamente." planejei mentalmente.

-Seu nome por acaso seria Lanoff? 

Ele olhou para seus dois amigos. Todos eram encorpados, embora de maneiras diferentes. Um era mais gordo, encorpado para os lados, enquanto o outro era mais alto, encorpado para cima. O humano com quem eu falava era uma mistura saudável dos dois.
O mais gordo possuía muitas sardas em seu rosto e seu nariz parecia o focinho de um porco. Seus olhos eram pequenos e escuros, enquanto seu cabelo era castanho claro. Em contrapartida, o mais alto possuía o corpo mais magro entre nós quatro. Seu cabelo era extremamente curto e castanho e possuía olhos da mesma cor.
Todos começaram a rir.

-Se está procurando aquele idiota desligado, ele está atirado bem ali. - o mais alto apontou.

E os três saíram, rindo. Acabei ficando sozinho, falando com o ar. Eu não gostei nem um pouco disto. 
"Eu podia incinerá-los por tamanho desrespeito!"
Mas era necessário focar na missão.
Corri até o garoto deitado no chão. 
"ESTE é o Combustível?"
Deitado à minha frente estava o garoto magrelo que levou um soco estrondoso diretamente na barriga. Sua pele era incrivelmente pálida. Seus olhos castanho-claro estavam cobertos por uma espécie de objeto com duas lentes. Acho que os humanos chamam isso de óculos

-Com licença, qual é seu nome?

Ele levantou sua cabeça devagar, coberta de cabelos lisos castanho-escuro, no momento desgrenhados. Em seguida, ele arrumou a armação de seus óculos e me fitou, tentando me reconhecer, provavelmente.
Através das lentes, eu via meu reflexo. Meu cabelo, ruivo como fogo, estava bagunçado e meus olhos alaranjados pareciam mais vivos do que nunca. 
"O poder da Chama me modificou até fisicamente. Consigo notar!"

-Meu nome é Ezekiel.

"Ufa. O humano deve ter cometido um engano."

-Ezekiel Lanoff, aliás. - ele completou.

Sua expressão era do mais absoluto vazio.
"É ele." engoli em seco.

-E quem é você? - ele questionou.

Não respondi. Precisava pensar em como reagir. Deveria dizer meu nome?
Ele usava um uniforme idêntico ao meu. Caso isto fosse uma escola, eu não precisaria ter um nome matriculado nela?
Minha cabeça começou a aquecer. Acabei falando sem pensar.

-Eu sou Zigfriel, O Desc... - mordi minha língua para parar - Zigfriel Humyroni. É, isso.

Ezekiel refletiu consigo mesmo sobre isso.

-Muito bem, até mais. - ele deu a volta e saiu andando.

Enquanto caminhava, ele espantava a sujeira de sua roupa.
Pasmo, eu caminhei até ele.

-Que história é essa?! Pergunta meu nome e depois vai embora sem explicação?! - rosnei.

Percebi então meu erro. Tratando-se do Combustível, eu precisava ao menos tentar ser gentil, ou então ele poderia se afastar de mim. Isso não podia acontecer.
Mas, estranhamente, ele não se assustou. Agiu da mesma maneira que agia antes.

-O quê eu tenho haver com isso? Você perguntou meu nome. Refiz a pergunta por mera educação. Não é como se eu me importasse com você ou te conhecesse. - ele deu de ombros e colocou as mãos nos bolsos de sua calça.

-É assim que você trata desconhecidos? Como pretende fazer amigos desse jeito?! 

Ele revirou os olhos.

-E quem disse que eu preciso? Eu tô de boa. Agora, caso permita, preciso ir para casa. - e voltou a andar.

Ao passar por um arbusto, abaixou-se e pegou uma mochila. Deu leves tapinhas nela para espantar a sujeira e continuou seu trajeto.
Indignado, eu o segui.

-Lanoff, parado! - eu disse.

-Sim?

-Posso ir para casa com você? Há um assunto de extrema importância pendente entre mim e você. 

Ele olhou para o céu, provavelmente pensando. 
O azul do céu praticamente não existia. O dia estava completamente nublado. A camada cinza de nuvens bloqueava o céu e o sol.
Eu já ouvi falar sobre nuvens brancas e céu azul antes. No Império Pyromano, a cor do céu varia sempre de laranja para vermelho, nunca azul. Mas eu estudara sobre isso em algum dos livros sobre a vida humana e seu mundo.

-Não. - ele respondeu e depois voltou a caminhar.

Ele tirou de um dos bolsos um amontoado de fios. Com os dedos da mão direita, começou a brincar de desamarrá-los.

-Não!? Por que não?! - questionei.

-Eu não conheço você, só sei seu nome. Não levo estranhos para casa.

Suas palavras faziam total sentido.

-Mas, caso insista tanto, pode vir. Eu não me importo mesmo. Você é aluno transferido, não é mesmo? - com sua mão esquerda, ele agora mexia em um aparelho retangular eletrônico.

"Passo um, completo!"

-Sim, isso mesmo, sou um aluno transferido de...

Eu falava sozinho. Ezekiel Lanoff já andava longe de mim.
Corri para alcançá-lo. 
Resolvi esperar para contar a verdade quando chegasse em sua casa. Com isso em mente, caminhei quieto até chegarmos em sua residência. Ele morava em um prédio de aproximadamente nove andares.

-Você faz parte da nobreza, não é mesmo? Ou seu pai deve ser um burguês muito rico. Acertei?

Ele pegou a chave e abriu o portão da entrada. 

-Disse alguma coisa? - ele tirou o aparelho acoplado ao amontado de fios dos ouvidos.

"Eu notei tantas coisas diferentes dos livros. O quê está acontecendo?"

-Por aqui. - Ezekiel Lanoff guiou, guardando seus apetrechos.

Paramos na frente de outra porta. Ele a abriu e nós entramos. 

-Chegamos em sua casa? 

-Não. Suba as escadas primeiro. - ele apontou para uma série de degraus.

Subi marchando, firme. Disciplina é algo importante para um militar do exército pyromano.
Em algum momento, Ezekiel Lanoff passou a minha frente e pôs a chave dentro da fechadura da última porta pela qual passaríamos.

-Eu não costumo receber convidados, então não há motivos para a casa estar limpa. Esteja ciente disso. 

"Desordem dentro das casas não é um sinal de boa vida para os humanos? Eles têm algumas concepções tão estranhas..." 
A porta se abriu. Ezekiel Lanoff fez um sinal para que eu entrasse primeiro.
Sem questionar ou hesitar, prossegui. A sala aonde eu agora estava era completamente escura. Não conseguia notar janela alguma e não sabia aonde estaria os interruptores. 
Ezekiel Lanoff adentrou a sala e fechou a porta. Por um estranho momento, fiquei sozinho em uma sala escura com o Combustível. No minuto seguinte, as luzes foram acesas. 

-Este é meu lar. Não digo para se sentir a vontade, mas tem minha permissão para permanecer vivo neste espaço. - Ezekiel Lanoff pôs sua mochila em cima de uma mesa.

Aquilo não era uma sala de estar, como eu imaginava. Era o quarto de Ezekiel Lanoff. E, como ele mencionou a pouco, não era um exemplo de limpeza e organização. Não importa para onde eu olhasse, havia roupas jogadas, provavelmente sujas. Eu vi peças de roupa masculinas que um homem não deveria ver, além das suas próprias.
Fora isso, e as demais embalagens jogadas, eu via um área surpreendentemente limpa. A única, aliás. Nesta área, eu via um gigantesco monitor de televisão. Ele era tão grande que cobria uma parte imensa da parede. Próximo a ele, havia uma cadeira acolchoada de rodinhas. Sua coloração era preta, e além disso era reclinável. Logo a sua frente haviam controles com formatos estranhos e um teclado. Próximo a estes itens, havia a cama de Ezekiel Lanoff. Ela estava totalmente bagunçada e vários objetos haviam sido jogadas em cima dela, como cadernos e roupas, estas pareciam limpas.
Nos cantos do quarto eu via mais três portas. Provavelmente uma era do banheiro e outra da cozinha.

-Realizou seu sonho? - Ezekiel Lanoff perguntou.

"Seria isto um resquício dos costumes pyromanos? Manter organizado e limpo somente o essencial para a vida?" refleti em minha mente.
"Embora eu não entenda o motivo de endeusar uma cadeira e uma televisão..."

-Ótimo. - Ezekiel Lanoff retirou sua gravata com cuidado e a jogou em sua cama.

Logo após, ele sentou em sua cadeira reclinável e soltou um longo suspiro.

-O que vai fazer? - perguntei, aproximando-me.

-Viver. Algo que não acontece lá fora. - ele apertou o botão central de um aparelho retangular próximo.

-Não entendo.

-Sua presença não vai me impedir de fazer o que sempre faço. Pode ir embora, pode ficar, eu realmente não ligo. 

Comecei a duvidar sobre a previsão do sobrenome Lanoff. Ele não parecia ter a Essência da Chama Demoníaca em si. Seria melhor dizer tudo para ele de uma vez e tirar a prova? 
Sim. É isso que farei.

-Eu preciso debater com você sobre um assunto importante. - me interpus entre ele e o monitor, este agora emitindo um brilho azul.

-Fala.

-Meu nome é Zigfriel, O Descendente da Linhagem de Humyromanos. Eu vim do longínquo Império Pyromano com a missão de restaurar o poder da Chama Demoníaca. 

"Ele provavelmente irá se assustar. Devo ficar preparado para o conter."

-Tá, e...?

Quase despenquei para trás.
"Como assim?! Ele nem duvidou?! Qual o problema dele?!"

-No momento em que se encontra um ruivo de olhos de fogo, é fácil perceber que ele gosta desse elemento. Aos meus veres, nesse momento, você é um viciado em RPG que aderiu tanto ao jogo que agora nem se considera mais humano. 

-O quê?

-Você deve ter descoberto sobre minha identidade real de alguma maneira e veio correndo até mim na esperança que eu fizesse parte de sua guilda. Mas não, obrigado. Eu jogo sozinho. 

Boquiaberto, protestei:

-Eu não faço ideia do que você está falando. Só escute o que tenho a dizer!

Ele não se moveu, tampouco tirou os olhos de mim. Prossegui.

-Você nasceu com uma característica especial. Se chama Essência da Chama Demoníaca. Assim sendo, fui enviado pelo povo pyromano para atender o maior desejo da sua vida. Em troca, você deve vir comigo e reacender o nosso Núcleo. Parece bom para mim, e quanto para você? 

Ele permaneceu quieto por um tempo. 
Após seu momento de pensamento, ele respondeu minha requisição:

-Eu não possuo desejos. Muito menos acredito nessa sua história.

"Certo, terei de comprovar" bufei.

-Preste atenção. - pedi.

Caminhei para o centro de seu quarto. Ezekiel Lanoff simplesmente rodou sua cadeira, e parece gostar disso.

-Segunda técnica de invocação: Espada-dupla flamejante! - conjurei.

Concentrei meu espírito e minha essência. Canalizei o poder da Chama Demoníaca concedido a mim diretamente pelo Imperador. Após esta preparação, invoquei duas espadas afiadas flamejantes. Suas lâminas curvavam para cima e possuíam uma coloração vulcânica. O símbolo pyromano era destacado na ligação entre o punho e a lâmina - um brasão em formato de escudo exibindo uma chama.

-Isso é prova suficiente?

"Desculpe assustar você, mas foi sua escolha não acreditar em mim."

-Maneiro. - ele disse.

Quase caí para trás novamente. 
"COMO ASSIM?! Ele não está assustado?!"
Dissipei as espadas e respirei fundo várias vezes. Faltava bem pouco para entrar em fúria. Caso isso acontecesse, os resultados não seriam bons.

-Tem mais algum truque? - ele aplaudiu.

"Qual o problema desse humano?"
Decidi entregar todo o jogo de uma vez. 

-O povo pyromano possui aspectos humanos e bestiais. Como sou da linhagem Humyromana, sou o mais próximo de um humano. Não possuo característica bestial alguma, além de minhas unhas. Mas como pode ver, elas foram cortadas para se adequar aos padrões humanos. - expliquei.

Agora, Ezekiel Lanoff parecia interessado.
Eu expliquei para ele sobre o Núcleo - sobre como o seu poder mantem o Império e permite a todos os pyromanos usarem suas habilidades e técnicas, colocando assim o Império em um status de hegemonia em relação aos demais. Expliquei também sobre ele ser o Combustível, e a condição, junto do motivo, para realizar sua função.
Após a explicação, ele não pareceu surpreso, nem confuso, nem incomodado. Permanecia com a mesma face de sempre.

-Certo. Eu não tenho desejo algum, então podemos acender o fogo malvado lá. - ele se levantou.

-Você precisa realizar seu desejo. Nesse estado, nunca conseguirá reacender a Chama Demoníaca! Vamos! Isso tudo é vergonha de me contar, é? Talvez você queira uma garota, afinal? - soltei gargalhadas maliciosas acidentalmente, sendo levado pelo momento.

A reação do Combustível não foi bem como a esperada.

-Eu não possuo interesses amorosos, não possuo vida social e não possuo amigos. - ele disse, sério - Minha vida é este quarto. Concordei com você por mera vontade de ajudar alguém, para variar, mas é só isso. Não há desejo algum. Minha vida já está perfeita como está. Só gostaria de não precisar mais sair daqui, mas isso é impossível. Então, vamos? Acender o fogo profano ou coisa assim.

"Não estou gostando disso. Esse temperamento... Essa personalidade... Não bate com a de alguém que possui a Essência. Preciso ter uma prova."

-Antes disso, preciso descobrir se você possui mesmo a Essência. 

Ele voltou a sentar em sua cadeira. Parecendo entediado, ele abraçou suas pernas e começou a girar.

-Você, por acaso, não teria energia demais para um humano normal? - indaguei.

Ele parou o movimento de rotação.

-Possuo uma doença única, variante da hiperatividade. Toda noite antes de dormir, eu faço trinta flexões e cem polichinelos. Caso esses exercícios não sejam feitos, eu acabo não conseguindo dormir, pois recebo uma carga de energia extra. Sou hiperativo, basicamente. Isso conta? - ele ajeitou seus óculos.

"Droga, ele possui a energia. Hora da segunda prova!" mordi meu lábio, torcendo para ser o humano errado.
Saí do centro da sala e caminhei um pouco. Escorei-me na parede e voltei a falar.

-Seres que carregam a Essência, assim como você, supostamente, e os pyromanos, possuem sangue quente. O mesmo acontece com sua saliva e suor. 

Ezekiel Lanoff estremeceu. 

-Eu não gosto de suar. - ele rangeu os dentes.

-Eu nunca disse que iria. - vasculhei meus bolsos. Por sorte, encontrei um canivete. - Aqui está. - eu o estendi para ele - Corte algum lugar seu que não doa. Pode só furar a ponta do dedo, já basta. 

Seu olhar demonstrava pouca afinidade à esta ideia.

-O quê foi? - perguntei.

Ele se levantou devagar, murmurando para si mesmo. Ameaçadoramente, começou a se aproximar de mim.

-Qual o problema? 

Ele segurou meu ombro esquerdo com sua mão, usando a segunda para apoiar-se na parede, prendendo-me.

-Saliva, suor ou sangue, foram essas opções, certo?

Eu assenti, desconfiado.

-Eu não estou disposto a suar. Sinto o mesmo pelo sangue. Acho a saliva o meio mais válido. - ele fitou meus olhos.

"Por que ele está fazendo uma voz sedutora? O quê esse humano tem na cabeça?!"

-O que INFERNOS você está PENSANDO EM FAZER? - revoltei-me.

-Como eu disse antes, não possuo amigos ou vida amorosa, muito menos vida social. Ou seja, não há motivo para ter gosto por algum gênero. Você quer provar minha saliva, certo? Acho que cuspir em você será muito mais nojento.

"Esse cara quer me BEIJAR?!" 
Ele começou a aproximar seu rosto do meu.
Chutei sua barriga com força, empurrando-o para o outro lado do quarto. Ele caiu em uma pilha de roupas e sacos de batatas fritas. Ele levantou logo em seguida, como se nada houvesse acontecido. 
Ele tem sorte por eu ter controlado minha força.

-Nunca mais tente fazer algo assim comigo. OUVIU BEM, EZEKIEL LANOFF?? - gritei, enraivecido.

-Pra quê tanta cerimônia? Me chame de Ezekiel. Na vida decente, chamam-me de Ezek. - ele girou seu pescoço, estalando suas juntas - E então, qual o próximo passo?

"Não tem jeito. Preciso assumir ele como o atual Combustível."
Com a cabeça fervendo de raiva, e tentando superar a situação assustadora que acabara de acontecer, eu declarei:

-Ezek, eu vou arranjar um sonho para você e cumpri-lo. Pelo povo pyromano! - ergui minha mão, em honra à meu povo.

-Avise quando acabar.

Ezekiel estava deitado em sua cadeira, mexendo freneticamente um dos controles em sua mão, com os olhos vidrados no monitor. Ele assistia um humano atirar sem parar com uma arma altamente letal.

-VOCÊ NEM ESTÁ PRESTANDO ATENÇÃO!

"É com esse cara que passarei as próximas semanas?"
Observei o meu arredor mais uma vez. Finalmente encontrei as janelas. Elas eram cobertas por pesadas cortinas pretas. Impedindo assim a luz do sol.
"Aguente, Zigfriel. Depois disso, será louvado para sempre."
"Embora... Caso eu falhe, eu serei vaiado por toda a minha vida, e provavelmente decapitado."
"É, vai dar tudo certo. Sem pressão alguma."

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