sexta-feira, 17 de outubro de 2014

As Pedras de Elementra. Parte 2. Capítulo 16. Narrado por Gen.



Gen


16. Uma pequena pausa para o café.


-Prontinho! - Merith terminou de amarrar a última atadura. - Agora estamos todos bem!

Viramos nosso olhar para Yuuya/Lucius. Ele estava desmaiado no chão, totalmente inconsciente, devido ao excesso de cansaço que teve devido a sua transformação involuntária.

-Ou quase. - ela soltou um risinho nervoso.

-Obrigado pela ajuda. - agradeci.

-Eu estou aqui pra isso.

Bebi um pouco da poção que Merith me dera. Ela me fazia sentir bem, como se espantasse toda a dor e curasse meu corpo lentamente. Tinha gosto de algo que eu não sabia explicar, mas provavelmente deveria vir de algo verde. Tinha gosto de verde.

-O quê tem nessa coisa? - Ingo mantinha sua mão sobre seu braço enfaixado. 

-Ervas, medicações, magia das águas, bençãos, água benta... Bem, isso não vai surtir efeito em Yuuya. - ela contava em seus dedos enquanto falava. - A, desculpe, "Lucius". Eu ainda não me acostumei.

Enquanto conversávamos, Adrian batia varias vezes na porta. Quando recuamos para nos recuperar, uma parede de sombras surgiu. Até agora ela continuava lá, intacta. 
Nada funcionou. Nem a magia branca de Merith, nem as armas de Ingo e muito menos o apoio moral dado por mim.
Ingo começou a cutucar Richard. Ela continuava quebrada no chão, não havia despertado até agora. Seus ossos podiam estar fraturados, provavelmente quebrados, mas ela estava viva, isso eu tinha certeza. Então, para amenizar a dor que nós sabíamos que ela iria sentir, ajudamos Merith a dar uma espécie de calmante para ela, para impedi-lá de acordar. Vai por mim, se ela acordasse naquele estado, ficaríamos surdos de tantos gritos.

-Acha que deveríamos ter seguido Annie e Stephie...? - Ingo se dirigiu a mim, incerto.

-Acho que iríamos atrapalhar invés de ajudar. Eu li suas emoções quando passaram. Não consegui detectar muita coisa, mas elas estavam preocupadas. E com pressa. Muita pressa. 

-Eu não posso ficar aqui sem fazer nada. Vamos sair daqui, achar outro meio de passar! - ele estava bem tenso, quase podia ver suas veias saltarem da testa.

-Temos dois desmaiados, não vamos deixá-los aqui sozinhos! Agora se acalme! - tentei manter a ordem.

Garras cresceram em sua mão direita, acompanhadas de um pelo laranja com listras pretas. Uma garra de tigre?

-O quê é isto? 

-É uma longa história... Digamos que eu seja meio transmorfo. Mas eu não sei controlar isso direito, as vezes aparece, as vezes não... É a primeira vez em um bom tempo. - ele mexia sua nova mão, fechando e abrindo diversas vezes, testando ela.

Eu não consegui aguentar. Eu invadi sua mente e procurei a tal longa história que ele mencionou. Era bem triste. Me fez entender o motivo de ele não entrar em detalhes.
Acontece que sua mãe era uma simples fazendeira que vivia em um pequeno povoado, afastada da civilização
Seu pai era um homem amante da ciência, e gastou até seu último centavo em materiais para sua mais importante experiência. Adrian nunca soube que experiência era essa.
Porém algo aconteceu no meio do desenvolvimento, e ele teve que ser interrompido. Ele perdeu o emprego, a casa, tudo. Ele havia gastado tanto tempo e esforço nesse experimento que perdeu tudo. Amigos, família...
Sem mais motivos ou forças para continuar, ele acabou conhecendo um cigano que o convidou para uma seita estranha. Ele se recusou, mas o cigano não desistiu. Quando ele pôde notar, já fazia parte dela a um bom tempo. Aquilo o garantiu um lar, comida, o suficiente para permanecer vivo.
E então as coisas se complicaram. Ele perdeu o rumo da sua vida e quando notou, estava foragido, sendo perseguido por esse bando de maníacos. 
Ele fugiu para um lugar distante, onde conheceu a mãe do Adrian. Eu tentei me concentrar mais, mas não consegui descobrir o nome dela, e muito menos o nome de seu pai.
O resto da história estava apagada. Esse lugar... Esse quartel general do mal... Ele mexia comigo, deixava meus poderes instáveis. Talvez quando sairmos daqui eu possa descobrir o resto.

-Posso saber porque você está me encarando com essa cara de retardado? 

-Oh, desculpe, desculpe! Eu não percebi! - tentei me desculpar.

Eu não estava mentindo, eu realmente não sabia que estava encarando ele. Quando olho dentro da mente das pessoas, eu não tenho como saber pra onde estou olhando ou o que estou fazendo. Principalmente se for uma pesquisa profunda como essa.

-Estão ouvindo isso? - Ingo se levantou em um salto.

Porém logo depois voltou ao chão. Sua perna estava ferida. Havia um corte tão grande em sua perna, que não havia bandagens suficientes para cobrir tudo.

-Também estou ouvindo... - a voz de Merith soou como um sussurro.

Adrian levantou Lucius com cuidado para não machucá-lo com suas novas garras temporárias. Eu e Ingo seguimos a ideia e levantamos Richard com o máximo de cuidado que conseguimos. 

-De que lado a voz está vindo? - perguntei baixinho.

-Acho que de lá. - Merith apontou para o corredor escuro da direita. - Vamos pelo outro lado.

Todos seguimos pela esquerda, por um corredor não tão escuro quanto o outro. Ao longe, uma luz fraca brilhava, clareando um pouco a caverna. Mas não havia muita diferença da iluminação do lugar anterior.
Mal pude acreditar no que via no fim do corredor. Uma cozinha. Uma vasta cozinha cheia de aperitivos e sobremesas. Entre elas, havia uma torta roxa com formato de nuvem. Eu conheço muito bem aquela torta, Gar a fazia o tempo todo. Antes de ser corrompido...

-Eu... Não... Acredito... Comida! - Merith estava sem palavras.

Seus olhos pareciam brilhar enquanto olhava para aquelas mesas cheias de comida. Se quiséssemos, poderíamos nos servir a vontade.
Eu e Ingo deitamos Richard na primeira mesa vazia que achamos. Adrian fez o mesmo com Lucius.

-Itadakimasu! - Ingo cantarolou enquanto sentava em um dos bancos.

-Oi?

-Se não sabe o que é, vai ficar sem saber. - ele me respondeu com frieza. - Desculpe, falta de comida mexe comigo.

Ele agarrou um garfo e moveu sua mão até o pudim.
"Você vai para o meu prato" ele repetia a mesma frase para toda comida que via.

-Ei, mas nós trouxemos comida, eu não acho que devemos... 
-Qual é, Gen! Temos todo esse tesouro aqui, pra que desperdiçar? - Ingo começou a encher seu prato como uma pessoa que não via comida a um bom tempo.

-Eu não vejo nada de errado. Eles podiam estar no almoço quando os ataques começaram. - Merith limpou o banco e se sentou ao lado de Ingo.

-Você também?! Adrian, o quê você... - ele estava atacando um enorme peru em uma mesa separada. - Estou sozinho nessa.

Todos comiam sem se preocupar. Eu fiquei de lado, junto aos corpos inconscientes de Lucius e Richard.
Eu me sentia tentado a me juntar a eles, mas não parecia correto. De jeito nenhum. Toda essa comida aqui, ela nem foi tocada. A maior parte dela ainda expelia fumaça, parecia que haviam sido feitas a pouco tempo. E isso era algo pra se preocupar.

-Tem certeza que não quer... Se juntar... A gente? - Ingo fazia pausas enquanto falava devido a boca cheia.

Ignorei a pergunta. Eu não conseguia olhar para eles sem ter vontade de experimentar. 
Vasculhei o lugar. Havia mais comida guardada, ingredientes, utensílios, talheres de prata polida...

-Tenho que confessar... Pra alguém que ganha a vida fazendo o mal, eles vivem muito bem. 

Então, algo chamou minha atenção. Uma xícara. Uma xícara com café servido nela, estrategicamente escondida. Quem se daria ao trabalho de pôr aquela xícara ali?
Eu a peguei com cautela e levei até meus amigos.

-Já que estão se arriscando, provem isso para vermos o quê acontece. 

Nenhuma resposta. 
Eles ainda não pararam de comer. A quanto tempo que eles não ouviam falar de comida? Eu vi Ingo e Adrian comer vários sanduíches hoje cedo!

-Pessoal? 

Dei a volta na mesa e puxei Ingo para fora da mesa. Ele resmungou e voltou.

-O quê aconteceu com vocês?! 

Eu não sabia se sentia medo ou raiva. Medo por eles possivelmente terem caído em algum feitiço que não conseguimos detectar, e raiva por estarem me ignorando daquela maneira.
Tentei ler suas mentes. Era igual a tentar ouvir rádio em uma estação fora do ar. Só estática.

-ALÁ! EU DISSE QUE ERA ARMADILHA! - embora eu estivesse brigando com eles, eu sabia que eles não podiam ouvir. 

Procurei ao meu redor algum meio de acordá-los. Se eu deixasse eles ali daquele jeito ele ficariam incapazes de lutar, presas fáceis.
Tentei acordar Lucius. Ele rosnou e se virou para o lado. De inconsciência ele passou para sono profundo, estamos progredindo. Agora, como faz ele passar direto pra fase do acordado?
Então pensei na possibilidade de que se não houvesse comida, não haveria motivos pra eles ficarem ali. 
Subi em cima da mesa e comecei a chutar a comida para longe deles. Feito isso, desci e esperei eles saírem do transe. 
Em um piscar de olhos, a comida voltou.

-Isso já é trapaça! - choraminguei.

O medo superou a raiva. E se eu não conseguisse acordá-los? Chegaria alguém e acabaria com eles. E eu estou no meio deles!

-Vejamos... Analisando a situação, pode ser um transe hipnótico... - eu andava em círculos sem parar, tentando achar uma solução. - Se for, não vou ser eu que vou conseguir desfazer... Então talvez...

Era uma ideia meio louca, mas resolvi tentar. Devia haver um motivo para terem escondido aquele café por aí. Minha teoria? Que alguém suspeitasse que certa pessoa não iria cair no lance da comida, e começaria a bisbilhotar. Deve haver mais comidas ocultas por aí. Elas serviriam de iscas, e eu seria o peixe que não foi fisgado.
Mas eles não poderiam estar em um transe só por comer comida, deve haver algo além. E o único jeito de descobrir o que era, é experimentando algo.
Peguei a xícara de café.

-Se você ousar bagunçar minha mente... 

"Olha lá, Gen enlouqueceu e está falando com uma xícara!" provavelmente este seria o pensamento de qualquer um que aparecesse nesse momento.
Provei do café. Cuspi tudo imediatamente.

-Esse troço é amargo! - localizei o açúcar e coloquei o pote inteiro no café. 

"Vamos tentar de novo..." 
Experimentei novamente. Estava melhor. Estava perfeito. Incrível. 
Aquilo me deu fome.
Sentei a mesa junto de meus amigos e experimentei do pudim que Ingo pegara mais cedo. Perfeito. Incrível. Aquilo sim era uma comida de qualidade. Procurei pelo próximo item que iria experimentar. Uma torta em especial chamou minha atenção, a torta típica de meu irmão. Sacudi minha cabeça e me levantei da mesa com um salto. 

-Xícara, eu te avisei pra não mexer comigo... - eu a peguei e joguei-a no chão.

Ele não se quebrou. Pelo contrário, o chão rachou.

-Mas que... 

As paredes, o teto, tudo rachando. E bem em cima da mesa, um pequeno buraco negro se formava. Ficando maior, cada vez mais. Aquilo não era um transe comum, era uma ilusão mental. Uma ilusão mental de Gar que podia nos matar.
Comecei a sacudir todo mundo, mas eles não saíam da mesa. 

-Droga, droga, droga, droga, DROGA! - comecei a repetir em desespero. - PENSE, GEN!

E então lembrei de algo que Merith me disse mais cedo. Algo sobre seu pavor por ratos e insetos. Valia tentar.
Mas onde eu acharia um rato ou um inseto?
Espere, onde estou com a cabeça? Isso é uma armadilha mental! Eu sou um psíquico! Eu domino esse lugar!
Me concentrei. Tentei fazer o buraco negro se dissipar ou pelo menos enfraquecer. Nada. Eu não conseguia mover nada do lugar. Mas quem sabe trazer coisas novas?
Estalei os dedos com o pensamento fixo em um rato enorme dentro do prato de Merith. 
Ela começou a gritar e caiu para trás.

-SOCORRO! UMA CRIATURA MORIBUNDA NASCIDA DAS SOMBRAS DOS ESGOTOS! - ela correu até a parede, apavorada.

-Funcionou... - eu estava muito impressionado comigo mesmo, eu nunca fizera algo como isso antes tão perfeitamente.

Fiz o rato desaparecer.

-Merith, você têm alguma informação sobre os medos de Ingo e Adrian? 

-O quê? E-eu acho que não. - ela ainda estava tremendo por causa do rato. - N-não, espera! Acho que Ingo tem anatidaefobia

-Agora traduz.

-Medo de... - ela segurou o riso. - Ser observado por patos! - ela começou a gargalhar.

-Sério isso?

"Isso existe? Sério?" 
Bom, valia tentar. Fiz um pato aparecer na frente de Ingo. Sem reação. Então multipliquei o pato. Agora tinham quatro patos o observando. Ele estava com a cara abaixada, e ainda não os tinha notado. 
O jeito foi adaptar para ficarem assustadores. Fiz eles ficarem maiores e terem mãos nas asas. Ingo começou a ser estapeado múltiplas vezes.

-EI! PAREM COM ISSO! - ele finalmente reagiu.

Os patos se afastaram e começaram a observá-lo. Ingo engoliu em seco e moveu seu garfo até um pedaço de bacon. Ele começou a levar até a boca mas ele estava se impedindo.

-PAREM DE OLHAR PRA MIM, BICHOS IMUNDOS! - sua alabarda apareceu automaticamente em suas mãos.

Ele quebrou a mesa ao meio e os patos viraram pó, ao meu comando. Eu não me perdoaria se fizesse aqueles pobres patinhos mutantes imaginários morrerem.

-O quê está acontecendo aqui?! - Ingo estava ofegante.

O buraco negro no teto estava cada vez maior. Agora ele estava sugando as coisas mais próximas do teto.

-Temos que acordar o Adrian! Alguém conhece um medo dele? - corri até Lucius e tentei carregá-lo. Ele era muito pesado para mim.

Ingo se aproximou e me ajudou. Nem ele, nem Merith sabiam de medo algum de Adrian. 

-Merith, tente abrir as portas. - pedi apontando para as três portas existentes no lugar.

Aquela por onde entramos, e mais duas em cantos opostos da sala.
Deitamos Lucius no chão. Quanto mais baixo ele estiver, mais tempo sobreviverá.
Repetimos a ação com Richard.

-Vamos! Saia desse transe! - comecei a puxar Adrian para fora da mesa.

Ele sempre voltava para ela, resmungando algo para si mesmo.

-Alguém tem alguma ideia? Qualquer uma! - implorei.

-Podíamos deixar ele aqui. - Ingo sugeriu.

-Esta não é uma opção. - revirei os olhos.

-Não podemos deixar ele aqui. Literalmente. Não há saídas! - Merith notifico, sombria. - E agora? Alguma ideia? Gen?

-Por que pergunta para mim? 

-Ora essa, você é o inteligente entre nós três. O Ingo é aquele burro que age sem pensar e eu sou a dama indefesa que dá apoio moral e faço o que der para fazer ao meu alcance. O quê sobre sabe você? - acho que era a primeira vez que eu ouvia ela falar uma frase tão grande.

"Essa é boa. Sobrou pra mim agora."
Parei para pensar.

-Bom... Se isso é o que penso que é, deve ter alguma falha. Tipo um bug de computador, algo que pode desestabilizar tudo. Isso nos tiraria daqui, mas eu não faço ideia do que pode ser. - expus a única ideia que eu tinha tido.

-Se encontrarmos, o quê precisamos fazer? - Ingo já começara a procurar algo estranho e diferente pela sala. 

-Acho que tocar, quebrar, esmagar, algo assim, já seja o suficiente. 

O buraco negro acima de nossas cabeças ficava cada vez maior. Claro, comparado aos buracos negros reais aquilo não chegava nem a ter o tamanho de uma formiga, porém já era o suficiente para acabar com a nossa raça.
Corri por cada centímetro da sala, abrindo tudo que tivemos maçanetas ou algo para puxar. Merith e Ingo vinham atrás de mim, examinando tudo.

-Acharam algo? - procurei dentro de um enorme saco cheio de sal.

-Não... - Ingo procurava dentro de um saco de açúcar.

-Gente, as chances de ele estar em um pacote de comida LACRADO são muito pequenas, não acham?! - Merith brigou.

-Temos que verificar tudo. - Ingo estava com a boca cheia de açúcar.

O quê aprendemos até agora?
Buracos negros crescem em tetos; Ingo tem um buraco negro no estômago e tem anatidaefobia; esses dois devem ser meio idiotas, porque perto deles eu sou inteligente.
Quanta lição de vida.

-Gen... - Merith e Ingo chamaram por mim com uma voz flácida.

Eu estava procurando dentro de uma caixa de madeira enorme e acabei ficando preso mas por sorte consegui me libertar. 

-O quê foi?

Eles não precisaram responder. Nas paredes ao redor, haviam mais buracos negros crescendo, se tornando maiores. O que ficava no teto começou a sugar mais forte, ele estava puxando o cabelo de Merith para cima agora.
Fui obrigado a me afastar. Não prestei atenção para onde estava indo e acabei batendo de costas com Ingo.

-Mais algum plano? - Ingo resmungou.

Eu realmente estava tentando, mas eu nunca estivera numa situação daquelas antes!
Procurar nos armários perto da parede não eram mais uma opção, e se continuasse nesse ritmo seríamos sugados por algum deles, e sabe se lá o quê aconteceria conosco! Podíamos ser atirados no espaço para morrer sufocados, ou então podemos ficar presos em alguma dimensão esquisita cheia de aliens canibais, ou pior... podíamos ficar presos em alguma prisão espacial pelo resto da eternidade, comendo comidas esquisitas e com gosto de tofu!
E ainda tem o fato de tudo ser uma ilusão. Podemos morrer? Sim. Mas conhecendo o meu irmão, e o que ele se tornou... Ele vai nos torturar muito, até acabarmos
desistindo da vida. Vamos sentir toda a dor que ele quiser que sintamos. Mas ele é muito extrovertido para simplesmente ir direto ao ponto. Ele está esperando sermos pegos por sua armadilha para o seu "show" começar.
Adrian soltou um grande arroto e se deitou em cima da mesa, com a barriga cheia e estufada.

-Vai dormir agora? NÃO É HORA PARA ISSO! - Ingo sacudiu Adrian, mas ele estava pouco ligando.

-Gen, esse erro na ilusão seria algo que conhecemos ou já vimos antes? - Merith perguntou com a voz fraca. Ela devia estar com medo.

-Acho que sim... - ela me fez ter uma ideia, uma grande ideia.

Eu já tinha visto algo conhecido aqui antes! Foi o que me tirou do transe da comida, a torta marca registrada de Gar! Ele não havia sido tocado por ninguém, devia estar limpo ainda. Só podia ser isso, não tinha outra solução.

-Rápido, preciso da torta! - comecei a revirar toda a mesa, jogando tudo que não era a sobremesa de meu irmão no chão.

Um fato curioso é que eu não presto muita atenção quando desesperado. Isso não deve afetar na minha busca, não é?

-Sério? Já se passou a hora de comer. - Merith implicou.

-Não é uma torta, é A torta! - tentei enfatizar o máximo que pude, para deixar bem claro que eu não era só mais um guloso como o Ingo.

-Qual é a diferença...? - sua voz soou mais inocente do que deveria.

-Pessoal! - Ingo chamou nossa atenção com um grito.

Os buracos negros, os vórtex se preferir, estavam muito mais perto e maiores. O que se localizava no teto estava puxando tudo para cima. Os talheres, os guardanapos, os utensílios, a comida... Se eu não achasse logo a falha da ilusão seria tarde demais. No momento que o objeto for sugado por um dos vórtex, podemos declarar game over. Fim de jogo. Não continua no próximo capítulo. Acho que dá para entender.

-Procurem por uma torta! Roxa ou azul, eu nunca consegui identificar direito, com formato de nuvem! DEPRESSA! 

Merith e Ingo obedeceram sem questionar. Começaram a procurar por todos os cantos. No meio da correria tivemos a ideia de quebrar a mesa com tudo. Se a torta estivesse lá, seria quebrada. Mas não conseguimos tirar Adrian de cima da mesa. Ele havia adormecido e parecia já estar na quinta fase do sono profundo, se é que isso existe.

-Por que tem formato de nuvem? - Ingo perguntou enquanto pisava em cima das comidas e sobremesas.

-Antes de ser corrompido ele já era fascinado por devorar sonhos. Ele fingia que a torta era um sonho e comia todo feliz, com um grande sorriso no rosto. 

-Vocês são estranhos... - Ingo murmurou.

-Nem me fale.

Limpamos a mesa. Quebramos, pisamos, derrubamos tudo que podia ser nosso alvo. Nada. Nem sinal da torta. Estávamos presos naquela ilusão.

-É isso. Acabou. Fim de jogo. - me sentei em cima da mesa e abracei minhas pernas, totalmente arrasado. 

-O quê? Você não pode estar desistindo! - Merith respondeu indignada aos meus murmúrios pessimistas. - Você veio até aqui para ter seu irmão de volta, não é? Se desistir agora, ele ficará corrompido para sempre! É isso que você quer?

"É claro que não!" tive muita vontade de responder, mas eu não consegui. 
Primeiro pensei que eu estava com medo de admitir estar agindo como um fracassado, um perdedor, mas depois eu descobri que nenhum de nós conseguia falar.
Tentei abrir a minha boca. Permanecia fechada. Era como se eu tivesse uma espécie de cola nos lábios. Tentei forçar minha boca a abrir usando as mãos porém não obtive resultado. 
Não demorou muito para Ingo e Merith notarem isso e começarem a se desesperar.
Mas com tantas coisas que devíamos nos preocupar, demos atenção para a errada. Os buracos negros agora estavam muito próximos e nos sugavam com uma força imensa. 
"Rápido, se segurem em algo pesado!" ordenei a eles por pensamento. Meus poderes psíquicos finalmente vieram a calhar. 
Empurrei Adrian para o lado com força e o fiz cair da mesa. Ele fez um barulho alto ao cair no chão mas não era para se preocupar com dor. Pedi ajuda para empurrar nossos amigos inconscientes para de baixo da mesa. Era nossa única opção. 
Logo, estávamos eu, Merith, Ingo, Richard e Adrian em baixo de uma mesa com três buracos negros a nos cercar. 
Espera, e quanto a Lucius?
Procurei por ele em todos os cantos da cozinha, ele não estava lá.
"Pessoal, Lucius desapareceu!" 
"Eu percebi..." Merith respondeu por pensamento.
Eu era poderoso o suficiente para conseguir estabelecer uma conversa mental entre três pessoas, por que eu não pensei nisso desde o início? Nós falamos o tempo todo. Contamos para Gar o que íamos fazer, e ele obviamente se aproveitou disso. Ele deu algum jeito de esconder o ponto fraco da ilusão, e de quem é a culpa? Do mente pequena aqui que não bolou um plano decente mais cedo.
"Será que ele foi engolido por um dos buracos negros?" Ingo estava com os olhos arregalados. Ele sabia que se isso realmente tivesse acontecido, nós seríamos os próximos.
Tivemos segundos de silêncio. Um silêncio mortal. Não houve barulho dos vórtex, nem nenhum pensamento entre nós. Adrian não resmungava enquanto dormia, e Richard nem parecia viva. Esse silêncio perdurou por um tempo. Tempo demais. Não foram segundos, foram mais de minutos. Ou quem sabe não. O tempo parecia não passar, como se cada segundo fosse um longo século. 
Até que então isso acabou. Os buracos negros cresceram o máximo que puderam dentro daquela cozinha amaldiçoada por Gar e nos sugou. Cada um de nós foi para um lado. Eu não pude nem ver o que acontecera com Richard e Adrian. 
Me encontrei em uma espécie de cela de prisão. Eu vestia um longo macacão com listras horizontais pretas e brancas. Em minhas mãos havia uma gaita (um instrumento que eu nunca aprendera a tocar). 
Acima de mim descia uma luz pálida ofuscante. Ela iluminava toda a cela, me permitindo descobrir que ela era redonda, cercada pelas grades. 

-Socorro... - minha voz saiu como um sussurro, embora eu estivesse gritando por dentro.

Comecei a sentir que algo ou alguém me observava. Atrás das grades enferrujadas, um milhão de pontos vermelhos me encaravam. Olhos de algo que com certeza não era humano. 
Aquelas coisas pareciam murmurar algo sobre mim em uma língua distorcida e aguda que fazia meus ouvidos sangrarem. 

-Gar... Eu imploro... Por favor, pare...

Alguma coisa agarrou meus braços com força. Algo que parecia uma corda negra que vinha da escuridão profunda além de minha pequena cela de prisão. Não, não eram cordas, eram correntes. Longas correntes negras com um enorme gancho na ponta de cada uma. 
Comecei a sentir dor imediatamente após descobrir que haviam duas ganchos atravessando meu braço. E aquilo não parou. Mais e mais correntes apareceram da escuridão. Me puxando, me perfurando, me rasgando. 

-Não... Eu imploro, pare... - eu implorava com lágrimas escorrendo dos olhos.

As correntes pararam de aparecer e o barulho das criaturas aumentou. Estavam rindo de minha desgraça. Rindo enquanto eu estava ali, quase morrendo.

-PAREM! PAREM POR FAVOR! - eu gritei em desespero.

As criaturas pararam de rir e começaram a rosnar. 
Um barulho de polias se movendo irrompeu meus ouvidos e as correntes reagiram a isso. Começaram a me puxar. Eu fui levantado no ar e puxado para diferentes direções. Eu iria ser RASGADO AO MEIO se aquilo não parasse. 
Tudo que eu consegui fazer foi gritar de dor. Mas no fundo, eu sabia que não adiantaria nada. Eu passaria aquilo pelo resto da eternidade. 
Até o dia em que minha mente não aguentar mais e meu espírito deixar meu corpo.


...

Gen Nightmare Baku, este que vos fala, foi torturado por um longo tempo, um tempo impossível de se determinar. Poderiam ter sido minutos, horas, dias, anos... Mas não importava. Ele estava completamente submisso a ilusão doentia de seu irmão, Gar Nightmare Baku. 
O quê isso significa? Que ele podia passar anos, séculos, milênios sendo torturado sem parar. Mas na realidade não passaria de uma hora, um minuto ou quem sabe um mísero segundo.
"O quê eu fiz para merecer isso...?" eu me perguntei muitas e muitas vezes, mas nunca consegui achar uma resposta.
"Eu só queria poder reunir minha família de novo! Bom, pelo menos o que sobrou dela."

-O QUÊ EU FIZ?!  

E então, os ganchos me soltaram. Caí no chão fazendo um grande barulho pelo impacto, que ecoou por todo o lugar. 
Liberdade? Não, falsa liberdade. Vai me dar a sensação de que estou livre para me prender novamente e fazer doer mais, muito mais. Jogo mental básico.

-Eu não vou cair nessa. - sussurrei ofegante.

Eu não conseguia me mover. Havia tantos buracos em meus braços e pernas, criados pelos ganchos afiados, que eu achava impossível eu ainda estar vivo. Mas eu estava, e isso comprovava de uma vez por todas que se tratava de uma ilusão sádica da mente agora doentia de Gar.
E então as correntes retornaram. Começaram a aparecer aos montes, uma por cada intervalo das grades da gaiola. Elas vinham lentamente, avançando em espiral. Aqueles ganchos que ora já foram limpos e brilhantes, agora estavam enferrujados e quebrados. Tanto os ganchos quanto as correntes agora estavam em um tom marrom avermelhado, completamente enferrujados. 
Eles fecharam um círculos ao meu redor e a única luz do lugar, que vinha de algum lugar acima de mim e fazia meus olhos arderem por sua intensidade, se apagara.
Meus ouvidos começaram a captar um monte de vozes preocupadas. Algumas me pareciam familiares, mas eu não conseguia as identificar. Parecia que elas estavam longe, bem longe. Corri em sua direção. Devia ser impossível eu conseguir me mover, eu havia sido esquartejado! Mas eu conseguia me mover com facilidade, sem a menor dor.
As vozes foram ficando cada vez mais altas. De início, eram murmúrios. Depois, viraram falas, e logo após, gritos.
Um grande clarão me fez perder a visão e o controle sobre meu corpo. Era como ter os ganchos me puxando para longe, me impedindo de prosseguir. Eu rastejava desesperadamente em direção da luz, lutando contra a força que me atraía para longe. 
Totalmente cego, mantinha minhas mãos na direção de onde eu sabia que a luz vinha. Eu podia não acreditar em deuses, mas naquele momento eu estava quase começando a implorar ajuda a algum. E minhas preces foram atendidas, antes mesmo de realizá-las.
Alguma coisa segurou minha mão e me puxou com força em direção da luz, em direção das vozes. A força não teve chance alguma, foi ignorada como se nem existisse.

-GEN! - uma das vozes gritou alegre.

As outras a acompanharam, me saudando com glória. 
Agora eu já conseguia enxergar. Não era ninguém mais, ninguém menos, que meus companheiros de grupo: Merith, Ingo e Lucius. Pelo visto, Lucius havia restaurado sua força e despertado com força total.

-Você me deu um grande susto, sabia? - Merith me deu um tapa na cara.

Eu não sabia se ria ou se chorava. Era tão bom poder vê-los novamente. Eu sei que humanamente não se passou mais que alguns minutos, tenho certeza disso, mas espiritualmente eu sofri por dias, semanas... Eu estava acabado. Completamente abalado. 
Na próxima vez que vir Gar, não tenho certeza de como reagirei. Não sei se irei tentar salvá-lo ou então matá-lo. 
Uma parte de mim morreu lá dentro. E ele iria pagar.
Mas por hora, tentei fingir que eu estava bem, que nada havia acontecido. Suavizei o máximo que pude quando contei para eles pelos horrores que passei.

-E você aguentou firme a isso? Impressionante. - Ingo bateu palmas suavemente.

-É. Mas não foi tão horrível quanto pensei. - menti - Achei que seria pior.

-Você tem sorte. Eu fiquei cercado por patos. MILHARES deles. E pra piorar, eu estava preso em uma espécie de gaiola. Pra todo lado, aqueles animais endiabrados... - Ingo teve um calafrio.

-E como Adrian está? 

-Bem, pra uma ilusão, a comida era bem real. Adrian está fora de combate. - Merith informou enrolando seu cabelo com o dedo.

-E como foi sua experiência? Cercada por ratos, é? - cutuquei seu braço com meu cotovelo de brincadeira.

-Sim, sim... Claro... - ela parecia tristonha. Passava a sensação de que estava mentindo para mim.

-E você, Lucius, como escapou? E como nos libertou?

-Eu simplesmente acordei. Vocês estavam dormindo, então deixei como estavam... E eu estava com fome, então comi a única comida que havia restado, uma torta esquisita com gosto de amora. - ele soltou um grande arroto que veio acompanhado de um pouco de fogo negro. - Desculpe, força do hábito.

"Ele escondeu o ponto fraco da ilusão no mundo real... Como isso é possível?"

-Eu me dei ao luxo de canalizar um pouco do elementra ao redor para me recuperar. - Lucius contou, sério. - E encontrei uma energia muito estranha em relação a habitual. 

-Elementra...? Eles usam essa palavra no título da guilda, o quê é mesmo? - Ingo coçou a cabeça envergonhado.

-Basicamente nossa força vital. A força vital de tudo, aliás. Tem toda uma historinha para explicar o quê é e a sua origem, depois eu entro em detalhes, se quiser. - expliquei da maneira mais breve que encontrei.

-Então Lucius se alimenta de força vital? 

-Sim, algum problema? - Lucius bufou.

Ingo recuou um pouco. Lucius é um demônio, um devorador de almas vivo, é de se esperar que ele se alimente de força vital, não é? Eu me sinto tentado a bisbilhotar sua mente, mas tenho medo do que posso encontrar lá, então acabo sempre desistindo.
Olhei por dentro da mente de Merith. Ela estava mentindo, sem dúvidas. Eu estava quase conseguindo encontrar a memória certa quando a porta se abriu com um estrondo.

-ESSA NÃO! - o susto foi tão grande que cheguei a pular para longe.

Meu cérebro começou a pulsar de dor. Isso geralmente acontece quando sou interrompido no meio de uma leitura psíquica.

-Ufa, não são mais guardas. Oi gente. - uma voz boba nos cumprimentou. Annie.

-Annie? O quê faz aqui? 

Pisquei algumas vezes. Stephie apareceu ao seu lado. Impressionante.

-O quê vocês...

-Fomos atrás dessa emburradinha aqui. - Annie fazia cafuné na cabeça de Kathryn, que parecia muito irritada. - Não fica assim! Sorria!

-Vocês não tinham nada que se meter. Quem pediu a ajuda de vocês?! - Kathryn rosnou em resposta a simpatia de Annie.

-Melody. - ambas as gêmeas ninjas responderam, em sincronia.

-E tem que agradecer a ela. Se não tivéssemos chegado a tempo, você teria perdido a cabeça, literalmente. - Stephie brigou.

Neste instante, Adrian acordou assustado. Ele pulou da mesa e acabou de cara no chão.

-Já falamos sobre isso, você não sabe voar... - Kathryn mantia sua mão sobre sua cara, transmitindo decepção.

-Kathryn? Você estava atrás das pedras, certo? Como foi em sua busca? - Merith tirou um frasco de uma pequena bolsa presa em seu vestido. 

De onde veio aquela bolsa? Eu nunca tinha reparado antes.

-Parece que tive resultados? - Kathryn grunhiu - Essas duas me impediam toda vez que tinha uma chance de alcançá-las.

-Porque era uma armadilha! Você estava parecendo uma bomba kamikaze! - Annie protestou - De nada serviria você se arriscar para consegui-las se morresse! E se fosse falsa? Hein? HEIN?!

Kathryn a fitou com olhos. Dava para sentir uma tensão entre as duas.

-Vamos com calma. Agora que estamos todos bem, vamos nos apressar, sim? Melody e os outros podem estar precisando de ajuda. - Stephie lembrou.

Ambas Kathryn e Annie concordaram com a cabeça, ainda trocando olhares ameaçadores.
Parece loucura, mas elas estavam brigando por se preocupar uma com a outra. Meninas são complicadas mesmo.
Dei uma última olhada para trás. Depois dos momentos infernais que passei nessa cozinha, tinha certeza que nunca mais iria querer voltar. Então por que eu tive essa vontade de observá-la uma última vez? Talvez eu esteja enlouquecendo. 
Me voltei para a entrada a tempo de ver Kathryn e Annie começarem a discutir. Eu não sei exatamente o que houve, mas eu podia sentir uma batalha iminente.
Em suas mentes era possível ver pensamentos agressivos e descontrolados. As duas transbordavam de raiva. O estranho é que a pouco tempo suas mentes estavam limpas e normais. E eu nunca havia visto tanta raiva condensada ao mesmo tempo em uma única pessoa, quem diria duas.
Aquela sala ainda devia estar sendo controlada por Gar, devia as estar afetando.

-Rápido, temos que sair daqui agora! - alertei a todos.

E você acha que as duas briguentas me ouviram? A essa altura, já trocavam gestos e palavras não muito inocentes. 
Stephie colocou uma mão no pescoço de cada uma delas. Imediatamente, as duas caíram no chão desmaiadas.

-Uau! Você tem que me ensinar isso! - Adrian pediu impressionado.

-Ainda não está a seu alcance. Vamos. - ela pegou a mão das duas e as arrastou para fora da cozinha.

Lucius fez o favor de carregar Richard para nós.

-Porque temos que carregar esse peso morto? Eu poderia me livrar dela, se quiserem. 

-Sem chances. Há uma alma inocente vivendo dentro desse corpo incapacitado! - Merith protestou.

-Caso não saiba, almas inocentes não existem só dentro dessas cascas humanas. - seu olhar foi redirecionado para um outro canto da sala, embora não tivesse nada lá.

Eu não havia prestado atenção antes devido a toda a pressa e a correria pela qual passamos, mas Lucius parecia diferente. Fisicamente diferente. Quando entramos nesse lugar, ele era quase do meu tamanho e parecia ter em volta de doze anos, sem esquecer que tinha um jeito mais tímido e reservado. Porém agora ele estava maior, mais alto. Ele parecia ter lá por um metro e setenta de altura agora.
Não venha dizer que é culpa da chamada puberdade porque é impossível ele passar por todo esse processo em menos de um dia! 
É provável que isso tenha ocorrido devido a sua transformação demoníaca, mas eu não tenho muita certeza quanto a isto.
Atravessamos em silêncio o corredor sombrio. Só se ouvia o barulho de Stephie arrastando Annie e Kathryn no chão, mas o barulho não perdurou muito. Kathryn despertara rapidamente.

-Acordou, estressadinha? - Stephie não se virou para falar com ela.

Examinei suas mentes. Eu não consegui ter acesso a mente de Stephie, era como tentar arrombar uma porta de segurança máxima com um enorme cadeado, ou seja, impossível. Já Kathryn estava de volta ao normal. A raiva se dissipara.

-Por que sinto esse gosto amargo na boca? - Kathryn começou a flutuar no ar, não muito longe do chão.

"Gosto amargo? Como? Ela não comeu nada..." eu já estava começando a suspeitar que algo havia acontecido sem meu consentimento. Resolvi deixar de lado, deve existir uma explicação plausível para isso.
Quando me dei conta, voltamos ao ponto de partida. A mesma parede negra tampava a parede. Ela pareceu não ser problema para Kathryn, que a quebrou-a com um simples movimento com sua mão. 
A parede ficou em pedaços. No chão, só sobraram jóias, várias obsidianas. Agora tínhamos acesso a "arena de combate" do lugar. Nos apressamos, temendo que Melody, Selion e os outros estivessem em apuros.
O quê eu vi foi exatamente o oposto do que eu esperava. Próximo do enorme cubo preso por correntes havia um dragão com escamas prateadas deitado com a barriga virada para cima. Obviamente, Selion. 
A parte estranha não era essa. Havia uma pessoa que eu não reconhecia passando a mão em sua barriga enquanto falava com uma voz enjoativa de bebê.

-Quem vai matar seus amigos? É você! É você sim! - ela continuava acariciando sua barriga despreocupadamente.

Eu estava boquiaberto. Como, porque e quando isso aconteceu foram as primeiras perguntas que me fiz. 
Ainda confuso com o que estava acontecendo bem na frente de meus olhos, encontrei Melody, Aslan, Troian, Misake e Yousuke. Misake estava deitado no chão sendo tratado por Aslan, seu braço ainda estava inchado e pulsando.
Eu consegui detectar o ódio mortal transmitido pelo olhar de Melody. Não precisa ser psíquico para saber que ela estava com raiva. 
Troian e Yousuke estavam fazendo uma barreira a sua frente, para não atacar. Por quê? Não vejo motivo para não abrirem fogo e atacar. Algo devia impedi-los.

-Misake! - Kathryn correu até ele e se agachou. - O quê houve com você? Seu braço...!

-Heh... - ele deu uma risada seca - Eu descobri que não gosto de cobras. - e então seu olhar ficou sério - Não se preocupe, estou bem. Ainda consigo lutar. Bom, mais ou menos.

-Merith, cure-o! AGORA! - Kathryn ordenou.

Ela estava insegura. Com medo do que podia acontecer com Misake. No estado dele, devíamos nos preocupar mesmo.

-E-eu já fiz tudo que pude... Cada poção, cada método, cada curativo... Eu não sei o que fazer... 

Kathryn engoliu em seco, preocupada com Misake. 

-Eu vou ficar bem. Dou um jeito nisso em casa. Agora suas preocupações são outras. - Misake apontou para Selion.

-Quem é ela? Eu nunca a vi antes. - mesmo na distância em que estávamos, era possível enxerga-lá exatamente como ela era.

Ela tinha um longo cabelo castanho claro, que não era simétrico em seu fim, e usava o cabelo preso de um lado (isso demonstrava o quanto o cabelo era comprido). Ela estava com os olhos fechados, então não conseguia identificá-los. Suas roupas? Usava um short curto e tênis cano alto que ia até seu joelho de cor preta e púrpura. Cobria seu busto uma camisa preta com algum símbolo indescritível e por cima uma jaqueta jeans meio chamuscada e rasgada. Sua pele era bronzeada e dava a impressão que ela vivia tendo contato com o sol ou com calor. Jogado no chão ao seu lado, estava um chicote vermelho.

-Ela é uma caçadora de dragões. - Melody explicou. - Uma maldita caçadora que caça dragões divinos. 

-Você fala como se já a conhecesse. - Ingo argumentou.

-É porque já conheço. Já topei com ela uma vez e digamos que não somos chegadas. Mesmo assim, sei que passou gerações atrás de dragões. E parece que ela conseguiu capturar mais um. - após uma parada ela completou - Sim, eu disse gerações, além de extremamente cheia e irritante ainda é imortal.

-Ela capturou Selion? Não, isso não é possível. Ele é só metade dragão. - declarei sem acreditar - Basta ele se des-transformar e tudo fica certo de novo.

-Não é bem por aí... - Troian se intrometeu - Sabe, ele não consegue voltar a forma humana no momento. Não entendo o porquê, mas não consegue.

-E por que não atacam ela e fazem ele retomar o controle?

-Se fizermos isso teremos duas possíveis consequências: ou ela pode machucar Selion gravemente, ou então usá-lo para nos machucar gravemente. Dos dois jeitos, não é uma boa opção. - Troian explicou para mim.

-Caraca... Eu jamais teria pensado nisso! - Ingo revelou.

-É porque você é um cabeça de vento. - brinquei.

"Talvez... Talvez..." foi sua resposta.

-E mais uma coisa. O quê ela ta esperando acontecer? Por que fica lá brincando com ele? - para mim, aquilo não fazia o menor sentido.

-Isso é uma das coisas que está me irritando. Eu não sei! - Melody murmurou.

-Agora eu prometo que é a última coisa. Qual o nome dessa vivente? 

-Scarlet Dra Crimzon. - ela disse o nome como se tivesse nojo dele. - Ou simplesmente Scar da Prisão. 

Kathryn não pode deixar de gargalhar do nome inventado por Melody.
Eu ainda tinha mais algumas perguntas mas preferi ficar quieto. Eu mesmo já admito que estava agindo de uma maneira irritante. "O quê é isso? Como é aquilo?" todos deviam estar se segurando para aturar toda essa falta de conhecimento.
Mas o que me incomodava era o fato de Selion estar totalmente submisso a ela. Como caçadora de dragões, ela deve ter suas táticas, claro. Porém ele parecia estar gostando daquilo, como se não tivesse pensamentos, só uma mente primitiva e animal. 
Espera um momento...
Eu não conseguia detectar nada vindo de sua mente. Nenhum pensamento, nenhuma memória, nada mesmo. Seu cérebro estava vazio. 
Sabe quem vive com o cérebro vazio? Animais. É, parte dos animais existentes mantém sua cabeça vazia. Eles agem por instinto e também suprindo suas atividades básicas para manter a vida (comer, beber, pausa para fezes e seu prazer primitivo). 
Parando para pensar, podemos relacionar isto aos animais de estimação. Eles vivem no bom da vida, tendo todas as suas vontades atendidas, e ainda por cima ganham um cafuné ou uma carícia por dar companhia e alegria a seus donos.
Seguindo esta lógica... Selion havia sido domesticado?

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