quarta-feira, 29 de outubro de 2014

As Pedras de Elementra - Parte 2. Capítulo 17. (Ainda com Gen)



17. Terceiro Degrau.
Uma "bela" reunião de família.

Situação atual: menos dois membros da equipe (descanse em paz, Éolo); entre os feridos, só um se sobressai; um membro ausente (Raida ainda não apareceu); uma pessoa desmaiada e dois prisioneiros, também desmaiados. Acho que é isso.
Eu tentava pensar em um plano para livrar Selion daquela caçadora, ou então, pelo visto, domadora de dragões. O jeito seria tentar controlá-la de alguma maneira, mas eu nunca tinha feito algo assim antes. Uma coisa é trocar alguns elementos do campo de visão por outros que também estão nele, mas criar ilusões a partir do nada é algo muito avançado para mim.
Antes de qualquer um de nós conseguir agir de alguma maneira, ela se levantou e se espreguiçou, bocejando.

-Já gastamos um pouco de tempo, não posso mais enrolar. - ela mantinha um sorriso ameaçador no rosto. 

-O quê pretende fazer? - algum de nós perguntou.

-Habastair! - ela gritou alguma espécie de comando, levantando sua mão para o alto.

Esperamos algo acontecer. Nada explodiu, nada pegou fogo, nada foi quebrado, ninguém reagiu. Porém, Selion havia se levantando devagar. Dessa vez ele se apoiava no chão usando as mãos e as pernas, semelhante aos dragões comuns e demais animais selvagens. Seus olhos estavam vermelhos e fulminantes. Parecia nos incinerar com seus olhos.
Ele rugiu e avançou em nossa direção com suas garras flamejantes prontas para nos atacar.
Troian e Melody trocaram olhares rápidos, como se já tivessem algo planejado para isso. Melody deu alguns passos a frente de nós e aguardou pelo ataque. 
"Se usar como escudo? Ela só pode ter enlouquecido!"
Em resposta disso, Selion pareceu correr mais devagar, mas isto não era o suficiente para impedi-lo de pular em cima dela e ameaçar rasgar seu pescoço com suas garras ferventes. Todos pareciam muito chocados com isso. 
O quê era aquilo descendo o rosto de Selion? Seria uma lágrima?

-Nada pessoal, tá? - Troian o chutou de cima de Melody, o fazendo rolar pelo chão até parar, a uma boa distância de nós.

Ele se levantou depressa e atirou fogo contra mim. Por que justo para mim?
Vai ver porque eu era o curioso que tentava arrombar sua mente draconiana
Mas tive a sorte de ser protegido pela barreira de gelo que Kathryn fizera na hora certa para me defender. A barreira foi reduzida a uma pequena poça d'água em instantes.

-Agora sim ficou emocionante! - Scarlet aplaudia de pé. - Hey, Selion! Chamastrail!

Eu já não gostei do comando. 
O corpo escamado de Selion pegou fogo e seu corpo pareceu aumentar. Não, não pareceu aumentar. Ele havia aumentado. Seus dentes estavam ficando maiores, e prefiro nem falar das garras. Para você ter uma noção, elas já eram afiadas antes. Agora estavam mais.

-O quê faremos agora? - Merith disse com sua voz trêmula de desespero.

-Precisamos de tempo pra pensar no que fazer... - pensei alto.

Estava tão envolvido na situação que nem percebi que estava falando meus pensamentos em voz alta. Resolvi me controlar antes que dissesse algo absurdo ou vergonhoso.
De repente, comecei a ouvir uma voz estranha. Eu já conhecia aquela voz, já tinha escutado ela outrora. Vinha da mente de Selion. Pode me chamar de louco se quiser, mas eu tenho certeza que aquela voz implorando por ajuda para se libertar não era de Selion. Com toda a certeza não.
Resolvi deixar de lado. Por agora.
Eu tinha mais com o que me preocupar.

-Ingo, nenhuma arma? - perguntei a ele.

Ele balançou a cabeça negativamente. 
Selion voltou a se dirigir até nós, jogando enormes bolas de fogo. Ele mudava de alvo a cada tiro, era impossível prever quem seria o próximo. Yousuke pôs-se na frente de nós, cortando as bolas de fogo ao meio com sua espada, fazendo-as se dissipar.

-Gêmeas ninja, - Melody chamou - tentem novamente invadir aquele cubo, nós damos um jeito neles.

Annie e Stephie assentiram e correram pelas laterais até o quadrado tridimensional que pulsava e se rebatia no centro do lugar. Scarlet pareceu não gostar da ideia.

-CHAMASTRAIL! - ela fez uma arma com os dedos e mirou para as duas ninjas.

Selion para imediatamente seus ataques e as acertou com uma rajada de fogo enquanto ambas estavam no ar. Elas foram derrubadas. Caíram rolando no chão até bater com tudo na parede.

-MEU CABELO! - Annie gritou enquanto o apalpava, tentando apagar o fogo.

-Mal posso esperar pra ver o resultado que o próximo comando terá em você! - Scarlet revelou um sorriso maldoso.

Aproveitamos que Selion estava distraído e o atacamos. Nem todos, claro. Ingo posicionou sua alabarda e se preparou para um futuro ataque. Merith e eu ficamos atrás de Ingo, não tínhamos outra opção. Aslan estava tentando curar Misake de sua própria maneira, então consequentemente teve que se reunir conosco para não ser atacado.
Kathryn conjurou uma poça d'água no chão para Adrian usá-la contra Selion. Ele levantou suas mãos devagar. A água se levantou do chão, seguindo seus movimentos, e dispararam em direção de Selion, que rugiu ao ser tocado por ela.

-Tentem não machucá-lo! - Melody pediu.

Ao meu lado, Aslan ainda tentava usar seus métodos medicinais druidas para curar Misake. Ele tinha alguns totens cravados no chão e espalhava algumas ervas no seu braço. Algumas eram azuis, outras pareciam folhas pontudas semelhantes a pedaços de cactos.
Tive a leve sensação de estar sendo observado. Olhei para todos os lados possíveis, da maneira mais discreta que consegui. Não havia nada.

-Segure Selion. Eu vou acabar com isso de uma vez. - Melody se dirigiu na direção de Scarlet. 

Suas mãos brilharam. Agora sua mão direita estava coberta por gelo, e sua mão esquerda por água. Ela apressou o passo, correndo em direção de Scarlet. Selion até tentou pará-la, mas Adrian o atacou antes que pudesse.

-Você não vai fazer nada? - perguntei a Lucius.

-Não posso intervir nesses assuntos. - ele se sentou no chão e cruzou os braços e as pernas.

"Melhor nem perguntar."
A sensação que eu sentira outrora aumentou. Eu tinha certeza de que alguém me observava. Aquela sensação era como ter alguém de pé atrás de você. Mas não havia ninguém lá.
Aquilo estava me incomodando tanto que não conseguia prestar atenção aos acontecimentos ao meu redor. 
E então eu vi. Atrás de mim, um pouco longe na verdade, lá estava Gar. Me encarando com seu sorriso maníaco e suas órbitas oculares que não existiam. Ele mantinha seu visual pós corrupção: sua longa jaqueta púrpura que ia até os pés, sua calça jeans também no mesmo tom e sua bengala habitual. A única novidade era uma cartola que usava sobre sua cabeça.

-Ora, ora... - sua voz retumbou em meus ouvidos.

Todos ao meu redor haviam sido paralisados. O lugar todo havia ficado cinza e as únicas cores existentes eram as de meu corpo e de Gar. Ele estava se projetando na minha mente, conheço bem esse truque, não era a primeira vez que eu o via em ação.

-O quê encontramos aqui... - Gar estralou os dedos das mãos. - Não esperava que ainda estivesse aqui depois do que passou, lembra?

As correntes e os ganchos irromperam minha mente. Eu estremeci de pavor e sacudi a cabeça, tentando esquecer aquilo. Mas eu sabia que jamais esqueceria.

-Eu vou acabar com você, Gar. E depois vou te curar de alguma maneira pra voltarmos para casa! 

-Jura? Você é tão atencioso! Seria uma pena... Se eu dissesse que seu irmãozinho não existe mais. 

Cerrei meus punhos e corri até ele. Saquei minha espada curva e tentei acertá-lo. A espada o atravessou, mas eu não desisti. Fatiei seu corpo até me cansar, mas nenhum dos ataques fez efeito.

-Criança, você sabe que não pode me tocar, por que ainda tenta?

Ele deu um salto mortal para trás e se firmou ao chão com suas mãos. 

-Agora tenho uma visão mais ampla do seu fracasso. - zombou Gar.

Armas físicas eram inúteis. O nível dele era muito superior ao meu, logo meu esforço em tentar atacá-lo mentalmente também seria inútil. 

-Eu sei que você tem um motivo para estar aqui. Fale logo ou...!

-Ou o quê? Você vai me matar? FAZ-ME RIR! - ele deu outro salto e se pôs de pé.

-Ou... Ou... - eu devia ter pensado melhor no que disse.

Gar se aproximou de Merith, que ainda estava paralisada. Suas roupas, cabelo, pele... Tudo estava acinzentado, como tudo ao redor.

-Vejamos... Você... - ele tocou em sua testa. - A, você também. - ele saltitou até Ingo e cutucou seu braço. - Quem mais?

-O quê está fazendo, seu pirado?! 

-Falha minha. Fui muito rude. Não posso me esquecer de vocês. - ele tocou nas costas de Aslan e então correu até mim com seu corpo abaixado. Aquilo nem parecia possível.

Ele pulou e desapareceu na minha frente. Senti um cutucão rápido em meu pescoço. Gar estava atrás de mim com seu sorriso imenso e doentio.

-Você nem tem olhos, como consegue ver?! - me afastei dele aos tropeços.

-Eu sacrifiquei meus olhos para ter uma visão mais ampla. Mas não é nada que uma batata não posso ensinar a um aipim.

"Quê?"
Gar se aproximou e colocou sua mão em frente a minha cara. Ele estalou os dedos e tudo ao redor rachou e se quebrou, com um barulho de vidro estilhaçado ao fundo. Era como se o universo fosse um espelho que havia sido quebrado. 
Tudo ao redor ficou preto. 
Me vi em um túnel escuro com estalactites mortais acima de minha cabeça, logicamente não seria um túnel, sim uma caverna, porém o chão era feito de concreto puro. Não se encaixava na descrição de uma caverna. 
Logo a minha frente eu via uma fonte de luz. A luz do fim do túnel. Se eu não soubesse que aquilo era um reflexo doentio da mente de meu irmão, eu teria corrido na direção oposta a essa luz.
"Pior que está não fica, certo?"

Eu não fazia ideia do quanto eu estava errado.
Caminhei a passos largos e apressados até a luz, com aquela sensação de que algo terrível iria acontecer. Novamente, lembrei-me das correntes, dos ganchos. Cheguei a ter um calafrio. Aquilo não iria me deixar em paz.
Fora do túnel, eu me encontrei com meus companheiros. Porém somente aqueles que Gar havia tocado. Estavam reunidos Merith, Ingo e Aslan, todos confusos com a situação, em uma enorme sala branca sem nenhuma, exceto o local por onde eu entrara.

-Pessoal! - chamei.

Todos reagiram ao meu chamado e se aproximaram de mim, me fazendo perguntas como "têm alguma noção do que está acontecendo aqui?" ou então "como veio parar aqui conosco?".

-Isso é... Culpa de Gar... - mordi meu lábio, temendo a reação deles.

Mais uma vez, Gar me metia em uma situação frustrante, e envolvendo aqueles ao meu redor junto. E eu não conseguia fazer nada para impedir.

-De novo? Por quê?! - choramingou Ingo.

-Está falando do Devorador de Sonhos? - Aslan quis saber.

-É... Meu irmão imbecil. Estou prestes a desistir dele. 

-Recomendo que não faça isso. - Aslan colocou sua mão sobre meu ombro e me encarou com sua cara séria. - Não desista de seu irmão, de jeito nenhum!

-Por que eu deveria continuar a lutar por ele? Além de estar inalcançável, eu não nem sei como curá-lo dessa praga que colocaram nele. 

-Não é nenhuma praga. É magia negra. Veja bem, - Aslan se afastou - ele foi infectado, não é?

-Sim... - suspirei infeliz.

-Você já se perguntou pelo quê?

Refleti sobre isso. É óbvio que já havia me perguntado. Eu sabia, na verdade, o que tinha infectado ele, o corrompido.

-Ele foi corrompido por usar suas capacidades mentais da maneira errada. E então teve contato com pessoas não muito agradáveis, e acabou resultando nisso. - expliquei.

-Errado. Não foi nada disso. 

Essa era a única explicação, como poderia estar errada?

-Bom, em partes está certa, na verdade. - Aslan se corrigiu. - Ele foi corrompido por usar suas capacidades demais, isso está certo. Mas ele não teve contato com pessoas erradas. Mas com a energia errada. 

"Energia errada?"
A única energia que ele poderia estar falando seria a energia negra que o corrompeu. Mas disto eu já sabia faz muito tempo. Afinal, as pessoas erradas a apresentaram para ele, não é?

-Acho que me expressei errado... Veja, seu irmão... - um monte de trompetes começou a tocar, interrompendo a explicação de Aslan.

Gar estava atrás de Aslan. Era difícil perceber por sua ausência de olhos, mas ele parecia zangado. 

-Você fala demais. E é um grande fofoqueiro, sabia elfo mixuruca? - Gar puxou sua longa orelha de druida.

Aquilo foi muito infantil, até mesmo para ele.

-Se gosta tanto de falar, me fale o que você prefere. Morte ao fogo ou passar o resto da vida sem falar e ouvir? - meu irmão tentou intimidá-lo, mas não foi bem esse o resultado.

Aslan estava mesmo era irritado.

-Olha só, seu psicotroço retardado, eu não sou um elfo. Eu sou um DRUIDA. São coisas TOTALMENTE diferentes! - Aslan sacou seu machado e tentou acertar Gar. 

Mas falhou. Gar se abaixou antes de ser acertado e pulou para trás, a uma boa distância.

-Ui, parece que temos um elfo brabinho entre nós. - Gar levantou suas mãos, fingindo ter medo a fim de provocá-lo.

-Ora seu... - Aslan correu para atacá-lo, mas errou todos os golpes.

Gar desapareceu na sua frente e reapareceu segundos depois atrás de suas costas, onde o acertou com um golpe de cotovelo. 

-JÁ CHEGA! - Merith gritou com sua voz esganiçada. - PAREM COM ISSO TODOS VOCÊS!

As paredes ao redor pareceram oscilar. Isso me deu uma ideia interessante.

-Eu não aguento mais você. Você só está aqui para nos trazer sofrimento e dor. - Merith caminhou em suas direção com seu cabelo tapando seus olhos. - E QUER SABER? QUERO QUE VOCÊ SE EXPLODA! VOCÊ NÃO TEM NADA HAVER COM ESSA PORCARIA DE GUERRA PELO BEM DA HUMANIDADE!

Gar estava chocado. Aliás, todos estávamos. Mas eu sacudi minha cabeça e pensei na coisa que mais me dava raiva. O acontecimento mais frustrante da minha vida. Eu preciso de uma fonte de raiva extrema para meu plano dar certo.

-Merith...? S-se acalma... - Ingo tentou acalmá-la.

Ela o encarou de canto de olho de uma maneira que eu jamais havia visto antes. Ingo foi forçado a recuar.

-O-olha como fala comigo, mocinha azulada! Eu posso te matar agora mesmo ou... - Gar a confrontou.

-OU? OU O QUÊ?! DIGA! - ela pisou com tudo no seu pé.

Ainda estavam chocados demais para reagir.

-AGORA OUÇA O QUÊ EU TENHO A DIZER! VOCÊ VAI NOS DEIXAR SAIR DAQUI AGORA, VAI ABANDONAR ESSE LUGAR E NUNCA MAIS VAI CAUSAR PROBLEMA ALGUM! E se você não fizer isso... Você vai conhecer o meu lado negro que eu tive MUITO trabalho para esconder! 

Gar ficou sem palavras. Abaixou sua cabeça e se afastou.
As paredes pararam de oscilar, se tornaram sólidas novamente. Não era um bom sinal.
Meu irmão abriu um enorme sorriso, e começou a gargalhar. Já estava até acostumado com aquela reação dele em momentos como esse.

-SEU... EU VOU... - Merith avançou até ele.

-Vai é? VAI O QUÊ, CRIANÇA?! - Gar revidou. - Você não passa de uma menina fraca e indefesa. Você realmente me surpreendeu, sabia? Mas eu não sou tolo o suficiente para me deixar enganar por uma atuação como essa. Você não pode acabar comigo, não pode me fazer um arranhão. Porque você é FRACA.

Tentáculos sombrios saíram do chão e enrolaram seus braços e pernas.

-Me deixe sair daqui. AGORA! - ela ordenava enquanto se debatia.

-Você não tem poder sobre mim. 

Acenei para Ingo enquanto Gar estava distraído.

-Eu tenho um plano. Acho que vai dar certo. - expliquei rápido.

Contei a ele minha ideia sobre raiva e sobre as paredes que pareceram reagir ao stress de Merith da maneira mais breve que consegui. Ele sinalizou que entendeu tudo com a mão, levantando o polegar.
O plano era desestabilizar essa ilusão com raiva, como Merith quase conseguiu. Aslan já estava irritado por ser chamado de elfo, Merith teve um surto por algum motivo. Nós quatro juntos seríamos o suficiente para derrubar esse mundinho de Gar.

-PARE! PARE AGORA MESMO! - Merith gritava enquanto tinha seus membros exprimidos pelos corpos gelatinosos.

Na tentativa de salvá-la, Aslan tentou cortar os tentáculos que a prendiam, mas não teve efeito algum. Seu machado atravessou-os como se nem existissem.
E então, Gar se voltou para Aslan. Flechas saíram das paredes e o acertaram. No início eram uma ou duas flechas por vez, mas elas foram se multiplicando. Logo, eram dez flechas por vez, depois uma dúzia... Quando percebi, nem conseguia mais contar.

-Quem mais vai levantar algum dedo contra mim? - Gar estava jogando seu cabelo para trás sem parar, nos tratando como "a ralé".

-Eu. - Ingo se ofereceu.

-Você... Se ofereceu? Uau, que surpresa. Mas também, fraco como você é... Tinha que se render mesmo. - meu irmão tentou ridicularizado.

Mas Ingo estava confiante. Ele confiava em mim. Sabia que tudo ia dar certo.
Mandei uma mensagem mental para Merith e Aslan. Pedi para ignorarem toda a dor e pavor e transformar em raiva pura, mas só ao meu sinal.
Eu podia sentir o medo de Ingo. Mas mesmo assim ele se mantinha firme. Reuniu coragem e se dirigiu até Gar.

-Você não pode me derrotar.

Os dentes de Gar cresceram, se tornando pontudos e desumanos. Parecia uma criatura de filme de terror agora. Sem olhos, uma boca cheia de dentes medonhos e mortais. Já pode assustar as criancinhas na hora de dormir.
Um vulto apareceu na frente de Ingo. Eu não o reconhecia. Aos poucos, ele passou de uma sombra escura até uma imagem clara de alguém.
Era um homem comum que aparentava ter entre vinte a trinta anos. Seus olhos eram verde claro. Seu cabelo desgrenhado era loiro claro, quase idêntico ao de Ingo, e seu queixo era coberto por um amontoado organizado de pelos da mesma cor. Seus braços musculosos estavam cheios de tatuagens tribais que eu nunca vira antes, e todas tinham algo em comum, uma imagem de algo que se assemelhava com uma esfera, rodeada de névoa, em seu centro.
Cobria seu corpo uma camisa regata cinza com uma escritura que eu não conseguia ler, de tão embaçada que era, e uma bermuda esportiva. Usava em seu pés uma sandália de couro com a mesma escrita de sua camisa nas laterais.
A cara dele me fazia lembrar vagamente a de Ingo, o que me levava a deduzir que poderiam pertencer a mesma família, possivelmente irmãos.

-Isso... É golpe baixo... Você não... Ele... - Ingo estava perplexo e estava a ponto de chorar.

"Mantenha o foco!" eu o avisei por pensamento. "Nada disso é real!"

-Gar... Não vou perdoar por brincar desse jeito com a imagem de meu pai! - ele partiu para cima de Gar com sua alabarda.

O homem, pai de Ingo, se meteu no meio do ataque e foi atingido em seu peito. Não era uma ilusão, era uma figura sólida dessa vez. Ele caiu no chão com seu peito sangrando.

-Não... Não... D-de novo não... - Ingo se abaixou para ajudá-lo.

-Você nos traiu novamente... Não acredito que fui tolo de acreditar em você... - seu pai cuspia sangue no chão enquanto falava.

Eu não conseguia acreditar no fato daquele homem ser o pai de Ingo. Tudo bem que ele ainda era novo, mas ele parecia muito jovem para ter um filho daquela idade.

-Papai, não! Eu não... Isso é um engano! - Ingo o abraçou com lágrimas escorrendo dos olhos.

Ele mordeu a isca de Gar. E eu não tinha como avisá-lo, era tarde demais.
O homem se soltou de Ingo e o levantou no ar com uma de suas mãos. Ingo tentou se libertar, atacá-lo com sua alabarda. Mas ele havia largado ela no chão depois de atingi-lo. Agora ele parecia mais uma criança chacoalhando a mão enquanto fingia que ali havia uma espada.
Sentei no chão e cruzei as pernas. Fechei meus olhos e me concentrei.
Reuni toda a raiva que sentira de meu irmão nesse momento. O modo como havia me torturado, o modo como agora torturava meus amigos... 
Merith e Aslan faziam o possível para pensar como eu, transformando tudo em raiva, ódio, mas estavam sentindo muita dor para conseguirem suportar.
Sobrou para mim tornar a ilusão instável. O único problema seria como eu iria fazer isso.

-É um engano! Pare! - Ingo implorava pelo perdão de seu, aparentemente, amado pai.

Mas ele agiu friamente. O jogou no chão como se fosse um lixo.

-Você sempre foi o pior de nós. Uma desgraça. Não sei como logo você foi escolhido para carregar o poder de nossa linhagem! - as falas de seu pai estavam fazendo mais dor a Ingo do que golpes físicos.

-E você? "Maninho"? - Gar se aproximou de mim na ponta dos pés, fazendo questão de mostrar sua nova arcada dentária - Está meditando é? Virou budista? Oooowwww! - ele imitou o cântico de meditação dos monges.

-Estava planejando como nos tirar desse lugar. E sabe que você me deu uma ideia? - agora foi a minha vez de sorrir.

-Até parece, criança tola. Vou fazer você se arrepender de pensar que um dia poderia me alcançar! - Gar estalou os dedos das duas mãos juntas, na frente da minha cara.

Minha cabeça começou a doer intensamente. Caí de bruços no chão contra minha vontade. Devo ter sido empurrado por alguma coisa.
Gar colocou seu pé em cima da minha cabeça.

-E então? Cadê aquela superioridade, irmãozinho? 

O chão abaixo de mim ficou líquido. Aos poucos, fui submergido por aquele líquido preto e viscoso que aparecera como fruto da vontade e imaginação de Gar. Era como estar mergulhado em piche. 
Eu tentava me levantar, mas Gar me empurrava mais para baixo. Logo, eu não teria mais como respirar e acabaria desmaiando. Mas não.
Gar não se contentaria com isso. 
Ele esperou até eu ficar sem ar, até parar de me debater, para levantar minha cabeça e ver minha cara de derrota. 

-Os jogos mal começaram! Já vai desistir? 

Ele me jogou em direção do teto. Com a cabeça girando e tudo ao redor embaçado, fiquei preso de algum jeito. Demorei para perceber que estava grudado em uma enorme teia de aranha. 
Neste mundo louco, o maníaco que o controla é o único que o entende. Essa foi a última frase que ouvi meu irmão de verdade dizer. Mas ele já podia estar enlouquecido naquela época. Já faz muito tempo, eu não consigo nem lembrar.
Eu respirava fundo diversas vezes, ofegante, lutando para cuspir todo o piche que havia entrado em minha boca.
Abaixo de mim, via Merith tendo seus braços puxados pelos tentáculos. Eles haviam dominado quase todo o seu corpo. Estava quase completamente "engolida" pelos tentáculos.
Aslan ainda era atingido por milhões de flechas, só que com uma novidade, machados. Gar estava aproveitando sua fraqueza emocional para atingi-lo em cheio com uma infinidade de armas e munições.
Ingo sofria pelas palavras de seu pai. Ah, não, espere. Não eram mais só palavras. Seu pai segurava um enorme martelo. Parecia tão grande e pesado, mas ele o erguia como se não fosse nada. Ele atacava o filho com ele, que usava sua frágil alabarda como escudo. Ela estava quase cedendo. 

-Não... - uma gota de piche escorregou para dentro de meu nariz.

Raiva. Não, dor. Era muita dor e sofrimento. 
O lugar se desestabilizou com raiva, não com dor. Eu fracassei, mais uma vez.

-G-Gen! - Merith chamou com sua voz abafada pelos corpos gelatinosos. 

Ratos começaram a subir pelos tentáculos. O pior pesadelo de Merith.
Lutei para redirecionar minha visão para onde estava Ingo. O pai dele o batia com aquela arma, como se fosse o maníaco do Gar, enquanto um monte de patos ao redor os assistia.
"Os medos... A ilusão da cozinha era pra isso. Era para revelarmos nossos terrores mais bem guardados. E por minha culpa, eles contaram os deles."

-Gostou do resultado? Eu admito que deu bastante trabalho, mas eu gostei. - Gar se aproximava de mim lentamente, sendo erguido do chão por um pequeno palco de circo multicolorido. 

-Eu odeio esse novo você. 

-Eu me amo! - ele fechou os braços ao redor de si mesmo, se abraçando.

Tentei tomar o controle da ilusão com todo o resto de minhas forças. Além de ser uma tentativa inútil, fez Gar me olhar de cara feia.

-Está certo, hora de acabar com isso. Ou então te dou tempo suficiente para me derrotar. Eu não sou um vilão tão clichê assim, sabia? - ele abaixou sua cartola e pulou de costas. 

Caiu no chão intacto, depois de cair vários metros de altura.

-Pode matar, Eithan. - Gar gritou no ouvido do pai de Ingo.

Eithan era seu nome. Eithan Nova Hope. Pai de Ingo Nova Hope.
Ele ergueu seu martelo para o mais alto que seus braços conseguiam ir. 

-Não! Por favor, não! - Ingo estava todo ferido e sangrando.

Sua atividade cerebral estava baixa. Este ataque seria seu último que levaria na vida. 

-Ao meu sinal, sim? Quero os três ao mesmo tempo. Capricho meu. - Gar saltitou cantarolando até Aslan.

Gar o cutucou com seu pé. Ainda vivo.

-Você é duro na queda, não é mesmo, elfo? - Gar passou a mão em sua cabeça. - Muito sangue. Assim que é bom.

Aslan estava sem forças para falar. 
O teto começou a fazer barulho de engrenagens, como se alguma máquina tivesse sido ligada. Acima de Aslan, um enorme canhão desceu do teto, apontando diretamente para ele. 

-Quero ver eu não explodir seu espírito agora. - como de esperado, Gar foi a encontro de Merith.

Ele tirou os membros pegajosos de sua cara e a encarou.

-Olá. 

-VÁ PRO INFERNO! VÁ PARA O INFERNO! MORE LÁ, É O SEU LUGAR! - ela gritou com ele depois de puxar o ar bem fundo.

-Por que ser tão agressiva? Vim aqui para te fazer uma proposta. - ele passou a mão em seu rosto - Sabe, eu não tenho um rainha ainda. E eu vou me tornar general do novo mundo que criaremos quando Aron retornar, sabia? O quê acha de ocupar o cargo? Prometo vários súditos.

Merith pareceu enojada com a proposta. Mostrou a língua para ele e tentou se libertar, mas não obteve sucesso.

-Gar, deixe ela em paz! - ordenei.

-Você e que exército? 

-Isso não faz sentido... Saudades lógica. - Ingo brincou, praticamente rindo da cara da morte.

-Eithan. Pode matar. - o sorriso no rosto de Gar desapareceu.

Ingo ficou paralisado de pavor. Seu pai puxou o martelo para trás e ameaçou acertá-lo com tudo. Ingo não poderia fugir nem se quisesse, seu corpo estava ferido demais para se mover.

-Canhão, FOGO! - Gar gritou para os céus.

O canhão se moveu mais para baixo, focando precisamente em Aslan. Ele iria disparar a qualquer momento.

-Você eu vou deixar viver. Talvez eu possa brincar com você mais tarde. - ele passou a mão pelo rosto de Merith - Eu não sou tão ruim assim, sabia?

Eu comecei a me descolar do teto. A teia de aranha estava cedendo, e eu cairia com tudo no chão. Se eu sobrevivesse, talvez consegui-se salvá-los!

-Não sou tão estúpido, Gen. 

O chão se abriu logo abaixo de mim. Parecia uma pia com ralo destruir de comida. Havia lâminas por todos os lados, fazendo movimentos para todas as direções. Eu iria cair exatamente ali, e morrer despedaçado.

-Não se preocupe, você vai viver. Tenho que torturar mais, não é? Que graça teria matar meu irmãozinho cuti-cuti agora? 

Aquilo me fez lembrar dos ganchos. Me estripando, me fazendo em pedaços, dia após dia. Pelo resto de minha vida.
Não, isso não pode acontecer. Eu não vou deixar.
A teia cedeu. Eu caí em direção da morte.

-GEN! - Ingo gritou.

Pensar na teia cedendo não foi um bom plano, sem dúvida alguma.
Eu parecia cair lentamente. Será que eu iria ver toda a minha vida passar diante dos meus olhos agora? Não, porque eu sobreviverei. Para viver da pior forma possível, para sempre.
Dia após dia, serei morto e renascido dentro de minha mente. Sentindo toda a dor que Gar quiser que eu sinta, mas não o suficiente para me fazer perecer.
Já até podia ver. No dia que eu não aguentasse mais, Gar iria rir em cima de meu túmulo. Isso é, se ele se importar a ponto de me enterrar. Eu poderia virar comida de cão infernal, por exemplo.

-Ele está caindo lento demais... Vou acelerar isso. - Gar bocejou.

Espera, eu estava mesmo caindo mais devagar?
Essa era uma chance para fazer alguma coisa. Mas o quê... O quê...
Não havia nenhum objeto que eu pudesse mover para me tirar de lá. Não havia ninguém para me salvar, estava por minha conta.
Eu estava a ponto de desistir quando algo acertou a minha cabeça. Eu não sei o quê foi, e nem de onde veio, mas pareceu abrir algo em minha cabeça. Desbloquear algo em minha mente. Libertar alguma coisa. Você entendeu, né?
No meu último momento de vida livre, tentei usar minha mente para modificar a ilusão. O buraco mortal no chão se tornou uma piscina.
Tchibum! 
Caí com tudo na água, sem dor alguma. Ainda havia uma chance, e eu estava disposto a aproveitá-la.
Nadei até a superfície o mais rápido possível e saí da água. Eithan já havia começado seu ataque contra Ingo, seu ataque final. Apontei minha mão para ele, forçando a ilusão. Eu não cheguei a tempo, não consegui parar a tempo. Pude ouvir o estouro que se deu pelo ataque.

-INGO! - corri até ele.

Era difícil correr, minhas roupas estavam pesadas, encharcadas pela água.
Ao me aproximar, tudo que pude fazer é ficar pasmo. Ele estava intacto.

-Ingo...?

Seu pai não desistiu. O atacou novamente, porém desta vez eu tive tempo para impedir. Eithan desapareceu, ao meu comando. Como eu disse, tudo uma ilusão. Uma ilusão real e muito convincente, mas não deixa de ser falso. Será que isso faz sentido?

-Como você...?!

Ele não precisou responder, já havia entendido tudo. Em cima dele estava seu pequeno mascote, Green, uma criatura, literalmente, verde, vestida com folhas.
Ele carregava consigo uma pequena espada de graveto, mas obviamente não foi aquilo que salvou meu amigo, mas sim a esfera defensora que ele havia criado ao redor de si mesmo. Ele apareceu na hora certa!

-O-obrigado... - Ingo desmaiou pela falta de sangue.

Quando voltarmos para a realidade real - admito que dizer isso é estranho -, ele vai estar melhor. 
Um grande estouro ecoou pelo lugar. Eu me esquecera da situação de Aslan, mas não era tarde demais. Coloquei minha mão em minha cabeça, a fim de reforçar a telecinesia, e puxei Aslan para perto de nós. Todas as flechas e armas foram retiradas no caminho.
A bala do canhão quebrou o chão de uma forma que eu jamais vira, ou iria ver, na vida. Mas Gar se superou, conseguiu fazer algo impossível desse jeito acontecer. 
Ao bater no chão, o chão ondulou como água e explodiu em líquido metálico. Isso mesmo, algum metal em forma líquida. 
O interessante, é que ele ficou parado no ar, como se não houvesse gravidade. Seria muito legal tirar algumas fotos pra mostrar para todo mundo depois, mas não era o momento certo.

-PARE! PARE AGORA! - Merith berrava.

Gar estava mordendo seu pescoço com seus dentes irregulares e tenebrosos. Ao invés de sangue, um líquido azul escuro saía de seu corpo. Sua pele estava empalidecendo e murchando pela falta de sangue.

-Gar. Tire suas mãos sujas dela imediatamente. - a raiva que eu estava tentando recolher veio a tona.

Por que esse sentimento infeliz não me ajudou mais cedo?!
Gar fez como mandei e se afastou dela. Os corpos pegajosos a envolvendo também sumiram, junto com os ratos andando sobre eles, fazendo-a cair no chão, indefesa.

-Eu por acaso permiti que você ficasse vivo? Agora se atira no penhasco, vai! Eu mando em tudo aqui, vai pro teu canto. 

-Gar, Gar, Gar... Se você soubesse o quanto está enganado... - respondi a seus comentários com um sorriso no rosto.

Eu estava na vantagem agora, ele não.
Em um movimento rápido, ele apareceu atrás de mim e me acertou em cheio, diretamente na coluna, com seu cotovelo. Doeu muito, até caí no chão chorando. 
Brincadeira, ele não acertou. Eu li seus pensamentos, sabia que iria atacar, então eu desviei. 

-Como conseguiu fazer isso? - Ingo estava impressionado.

-Sem tempo! Vão ajudar Merith!

Eles correram até ela, contornando o metal parado no ar. Embora fosse líquido, formava vários espetos, linhas irregulares, formas pontudas, que poderiam vir a nos trazer muita dor.
Ataquei Gar com minha espada curva. Ele adivinhou meus movimentos e desviou, tentando me acertar novamente, dessa vez usando seus novos dentes como arma. 
Meu irmão podia não ser mais ele mesmo, mas permanecia ágil e capaz como sempre. Não consegui desviar a tempo e fui atingido.

-E então? Como é ser o segundo lugar em tudo? Aposto que deve ser muito BAIXO astral! - ele me jogou no chão e colocou seu pé em minha cara. 

Ele não fazia muito sentido agora. Talvez eu pudesse abusar disso.
Imaginei uma pequena explosão em frente a sua face, o suficiente para afastá-lo. Como um estouro de fogos de artifício, uma pequena explosão surgiu na frente da cara de Gar, o fazendo cambalear para trás e cair. Ao tocar o chão, ele rapidamente mudou seu rumo. Rolou pelo chão, impulsionou as duas pernas para pular e cair de pé no solo. Se ele não fosse o inimigo agora, eu aplaudiria.

-Parece que você está virando uma pedra em meu sapato. - Gar pegou sua cartola no chão e a pôs na cabeça.

-Você ainda não viu nada! - corri até ele com minha espada.

Resolvi parar no caminho. Eu tinha parte do controle total sobre aquele lugar, podia fazer algo muito melhor que um pequeno ataque com uma espada menor ainda.
Fiz um palco e um bastão aparecer em minhas mãos.

-Como você diz mesmo? Lembrei. É hora do show! - levantei meus braços como se cumprimentasse uma grande platéia.

-Você está me plagiando? QUEM VOCÊ PENSA QUE É PRA PLAGIAR MEU ESPETÁCULO?! 

Touchée!
Gar se invocou contra mim. Suas pernas cresceram e se esticaram em minhas direção. Ele agora tinha em mãos uma pistola antiga, como aquelas de filmes de faroeste.
Tentou me chutar com seus pés alongados, e era exatamente isso que eu esperava. Pulei para o lado e fiz um espelho aparecer em minhas mãos.

-LADIES AND GENTLEMEN! Nosso respeitável público! Temos uma atração muito especial para vocês hoje! - agi como se tivesse mais de três pessoas nos assistindo, era isso que Gar faria.

Gar começou a gritar um monte de xingamentos para mim, eu deixei ele bastante irritado. Ainda bem, porque esse era o objetivo.

-Você vai ver, seu pirralho imbecil!

Uma enorme criatura apareceu a sua frente. Era uma fusão de um monte de animais que formava uma criatura grotesca e assustadora que contava com: garras de caranguejo, pernas de tigre e zebra, cara híbrida entre leão e touro, língua de cobra, chifres de bode, cauda de serpente marinha, tronco de gorila, entre outras partes que não consegui identificar.
Ele caprichou, tenho que admitir.

-E então? ESTÁ COM MEDO?! 

-Apavorado. - sorri e levantei o polegar para ele.

Ele não notou que era brincadeira. "Só um louco entende o outro", agora comecei a acreditar nesta frase. Mas seguindo essa lógica, sou doido de pedra.
A criatura avançou em minha direção.

-Cuidado! - Ingo alertou.

-Faz tudo parte do show.

-VOCÊ NÃO VAI PARAR COM ISSO?! - Gar reclamou, enfezado.

Mostrei o espelho para a criatura no momento em que se aproximou de mim. O espelho se curvou e dobrou até virar um pequeno quadrado, e depois se expandiu até ficar maior que a criatura bizarra.
A criatura bateu no espelho e o quebrou em um milhão de pedaços que voaram para longe. 
Ela se virou contra Gar, pronta para atacar.

-Deixe-me explicar. Agora eu roubei seu bichinho, fim da história. 

-Você conseguiu virar algo que eu criei contra mim? Não, não, não! Isso não é possível, você é fraco e inútil! - ele começou a caminhar para trás, se afastando.

-Eu tenho meus dias. - dei de ombros.

Com um gesto de minha mão, a enorme criatura monstruosa atacou Gar. 

-Tsc. Até outra hora. - Gar desapareceu.

-Não, essa hora é AGORA! 

Impedi sua saída, mantive ele preso em seu próprio mundinho, algo que para mim seria impossível a uma hora atrás.

-Você...?! - Gar estava ainda mais perplexo e surpreso.

O líquido metálico preso no ar o prendeu, do mesmo jeito que fizera comigo, e começou a puxá-lo pelas pernas e braços.

-E então? Como vai escapar agora? Você gosta disso? EU NÃO GOSTEI NEM UM POUCO, GAR! - eu perdi meu controle emocional.

Esse era o meu medo. De perder o controle quando o tivesse em minhas mãos. Ele me trouxe tanta dor, e tudo que eu desejava era sua companhia outra vez, eu desejava minha família de volta. Mas ele havia ido longe demais. Eu não conseguia mais distinguir se eu queria matá-lo ou estar com ele novamente.

-Gen... Pare... - uma voz pediu vinda de algum lugar atrás de mim.

Merith. Ela havia despertado e estava sendo carregada até mim.

-Não se preocupe, eu vou vingar todos nós.

Comecei a apertar os membros de Gar usando sua própria explosão de metal.

-Cara, que besteira. Já estamos livres, vamos só tirar sua consciência e dar um jeito de curar ele! - Ingo parecia irritado. 

Ignorei-o. Eu havia me decidido.

-Criatura, pode acabar com ele. - mandei.

Merith ficou de pé mesmo com suas pernas tremendo. Ela já parecia melhor, sua pele estava quase de volta ao habitual, porém suas pernas tremiam ao tocar o chão.
Ela segurou em meu ombro e se aproximou. Usei minha influência naquele mundo para fazê-la melhorar, repondo seu sangue. Ela me agradeceu. Não, não agradeceu, me deu o maior tapa que já havia levado na vida.

-Por quê...? - passei a mão pela minha bochecha que ardia como brasas.

-Porque você enlouqueceu, idiota. - ela puxou seu cabelo azul claro com as mãos e o prendeu em um rabo-de-cavalo - Você queria seu irmão de volta, do que adiantaria um cadáver? Francamente...

-Você está tão diferente... Nem parece a mesma Merith! - Ingo revelou.

-Sim, não sou a mesma Merith. A Merith que vocês conheciam era a falsa que eu criei. Mas esse "Gar" - falava como se aquele nome não fosse dele - me fez revelar a vocês meu verdadeiro eu. E eu não gosto de mim. Tentei mudar, mas pelo jeito ele não gostou e mudou isso, parabéns.

Eu ainda estava processando a informação de que Merith não era uma menina indefesa e gentil com quem eu convivera durante esse pouco tempo que estive nesta guilda.

-E você, Gen, vai acordar para a vida agora! PODE IR NOCAUTEANDO SEU IRMÃO E NOS TIRANDO DAQUI, AGORA! - ela parecia ter algum tipo de poder para manter a ordem, mas eu sabia que esse poder seria a intimidação.

Bela jogada.
O certo seria eu ter me estressado, certo? Bem, eu a agradeci. Me fez voltar a mim, me impediu de realizar o maior erro de minha vida. Eu agora estou devendo para ela.
Larguei Gar no chão. O susto foi o suficiente para nocauteá-lo. No fim, ele não passava de um palhaço bobo e bipolar.

-Muito bem! RUM! - ela limpou as mãos.

-Certo, vamos sair daqui. - Ingo pediu.

Aslan fazia um gesto com a mão que consistia em apertar o pescoço. Devia estar dizendo que não conseguia falar.

-Acho que uma flecha te acertou em um ponto ruim. Deixa que eu arrumo. 

Curei a todos. Cada ferida, cada arranhão, deixou de existir.

-Você está ficando bom nisso! - Ingo aplaudiu.

Abri um buraco no "tecido" da ilusão. Podíamos ver nossos corpos jogados no chão, sem vida. Bastava entrarmos neles de novo.

-Sabe, algo me deixou curioso. Se você podia fazer tudo isso antes, porque não fez? - Ingo argumentou. 

-Eu não conseguia antes, eu não sei o que aconteceu. 

Aslan e eu seguramos Gar e o puxamos para fora da ilusão. Aquele era seu corpo físico, então assim que cruzamos a linha entre a ilusão e a realidade, ele caiu duro no chão, sem se mover.

-Rápido, depois conversamos sobre isso, é capaz de ele acordar! - Merith nos apressou.


...

Pisquei meus olhos diversas vezes antes de levantar. Queria ter certeza absoluta de que havia voltado a mim. 
Eu sentia um buraco no estômago, como se não comesse à semanas! Devo ter feito muito esforço para impedir Gar, gastado muita energia, sabe como é.
Todos se moviam novamente. Menos Gar, ele entrou para o clube dos desmaiados.

-CUIDADO! - Yousuke berrou.

Essa era a primeira vez que eu o ouvia falar tão alto. Talvez fosse a última, por que havia uma criatura gigantesca prestes a pisar em mim. 
Eu a reconheci imediatamente. 
Essa criatura era um dragão. Um dragão com escamas prateadas e olhos vermelhos. Um dragão chamado Selion.

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