sábado, 30 de maio de 2015

As Pedras de Elementra - Parte 2. Capítulo 24


24. Burst.

-Hoje é o dia em que Selion morre. - minha própria boca falou sem meu consentimento.

Uma pequena prova de minha auto-estima nas alturas: todo mundo quer me matar, até mesmo eu.
Aron parou por um momento, processando a informação recém obtida. Uma de suas mãos atraiu a pedra das almas, como um imã. A pedra brilhou em sua mão e o brilho subiu até seus olhos. 

-Agora tudo faz sentido. - Aron levantou-se devagar.

Assisti enquanto o cabo da espada rolava por minha mão, como se a gravidade fosse centrada lá. Eu não via sentido algum naquela brincadeira. Meu corpo, ou seja lá o que estivesse no comando, queria demonstrar seu poder?

-Alma quebrada aqui, alma quebrada ali. Quem é o próximo a aparecer com alma bifurcada? Apareça de uma vez. - Aron pediu delicadamente.

O pequeno corte em sua bochecha cicatrizou e desapareceu.
Até então, meu corpo observava Aron com cuidado, gravando em minha mente cada detalhe de seu corpo a fim de encontrar o lugar certo para abater. No momento seguinte, ele percebeu que nossos amigos (temia que fossem só meus) ainda estavam com uma enorme pata de criatura colossal tentando esmagá-los. 

-Pare-o. - ordenei.

Eu sentia uma dor aguda em minha garganta sempre que pronunciava uma palavra. De início, pensei que fosse minha garganta seca, mas a dor só aumentou. Algo estava errado.

-Por que eu deveria? Para ter formiguinhas batendo em meus pés? Eu sinto muito, mas é melhor assim. - Aron respondeu com frieza.

Ele abaixou-se e passou a mão carinhosamente pelo cabelo de Melody. 

-Acorde logo. - Aron sussurrou para ela.

Dentro de minha mente, bati com força no retângulo de vidro (não tenho certeza absoluta sobre o fato de ser um vidro ou não, mas, se for, é um do tipo resistente). Ao ter contato com a película, o branco ao seu redor vibrou por alguns segundos. Deslizei minhas mãos do vidro para mais embaixo. Uma parede. Eu havia encontrado uma parede. Isso significa que há extremidades em minha mente. Talvez não seja grande coisa, mas é um progresso. Se eu ao menos compreendesse como funciona, talvez eu pudesse controlá-la para sair. Não custa nada sonhar.

-Tire as mãos dela. - troquei a espada de mão, assumindo outra posição.

Meu corpo havia se abaixado. Eu não conseguia detectar como, mas havia. Agora a espada era empunhada em linha reta, sendo segurada próxima a minha cabeça. Meu outro braço acompanhava a direção da lâmina da espada.

-Eu mandei tirar as mãos. - repeti.

Aron levantou os olhos com desprezo e suspirou. Finalmente, Aron deixou-a de lado e focou em mim. Ou, no caso, no que fosse eu no momento. Uma parede fragmentada de pedras foi montada ao redor de Melody, protegendo-a. Após esta formação ser concluída, Aron deu passos a frente, recebendo instantaneamente um golpe de corpo poderoso. Lembranças de Lucius. 
Ao fim do golpe, Lucius empurrou Aron com força para longe, tomando distância de Melody e de mim. Sem parar, o demônio tentou acertá-lo com sua foice, mas foi em vão. Com um simples levantar de mão, um impacto foi criado, arrastando Lucius para longe. Retardou-o, mas não o fez desistir, pois no segundo seguinte ele ergueu-se para cima de Aron como uma sombra negra armada de três lâminas dilacerantes.

-Você é um grande incômodo. - as mãos de Aron brilharam.

O chão abaixo de Lucius rachou, abrindo uma cratera logo em seguida. Algo saiu da cratera, subindo ao redor de Lucius, formando pilares azuis pútridos. Era água. Água poluída e tóxica. Os pilares de água esticaram-se e envolveram o corpo do demônio. Por algum motivo, ele não se mexia. Não tentava se libertar. Talvez não conseguisse.
A água foi acumulando e acumulando, até que Lucius transformou-se em uma estátua negra presa em uma esfera de água suja. 

-Acabamos por aqui? Ótimo. - Aron limpou suas mãos, como se tivesse nojo de tocar em Lucius - E agora você é o meu último obstáculo. Façamos rápido, pois tenho um mundo inteiro para preparar para minha amada Melorry.

Por trás de Aron, vi uma luz fraca aproximar-se de Lucius. Era a criança que o acompanhava fora do covil. Eu não sabia muito sobre ela, e nem mesmo tinha visto ela com Lucius na biografia da pós-vida de Aron (péssimo filme, não recomendo). 

-Você custa a entender. - meu corpo tossiu.

Minhas mãos ficaram sujas de sangue. A dor me fez tropeçar, dentro do vazio de minha mente. Novamente, branco e mais branco. Irritado, bati o cotovelo com força na parede. Novamente, um tremor. Porém, desta vez, notei algo diferente. Durante o tremor, a cor branca foi substituída por vermelha. Isso deveria fazer algum sentido?

-Vamos, Selion! Pense! - gritei comigo mesmo dentro do vazio.

Foi aí que eu tive a ideia. Uma ideia louca, típica de mim.

-Quais eram as palavras mesmo? - eu forçava a lembrar.

Talvez, mas só talvez...
Atrás de mim, ouvia uma lâmina tilintar. O confronto havia começado e consequentemente, a dor começou a aflorar. Senti meus braços sendo arrancados de mim, mas, por sorte, era só uma sensação. Eu espero. 

-Flamus! - gritei.

Nenhuma escama, nenhum fogo, nenhuma agitação. Tentei novamente.

-Acorde!

Nadinha.

-Surja! Apareça! Liberte-se!

Sem progresso algum. 
Talvez eu precisasse de um momento de raiva e tensão psicológica. A poucos momentos, eu estava uma pilha de nervos, mas agora eu me sentia como se tivesse tomado uma porção imensa de calmantes e uma jarra de suco de maracujá. Por mais que estivesse irritado com o meu corpo fora de controle, por mais que não suportasse ficar preso naquela imensidão vazia, eu não estava definitivamente com raiva. Não me sobrava muita opção. O jeito era descobrir a frase usada por mim antes da transformação. Por que eu não conseguia me lembrar de algo que eu havia dito a tão pouco tempo?
Minhas pernas fraquejaram. Caí no chão.

-Você é bem energético, tenho de admitir. - Aron bufou.

Ao olhar para trás, vi meu corpo sendo empurrado contra o chão pelas mãos de Aron. Meus dois braços seguravam a lâmina da espada de um lado e os braços de Aron faziam força contra os meus do outro. 

-É incrível o jeito como você aguenta tanto. De onde vem tanta força? - Aron perguntou, parecendo cansado.

Seu corpo brilhava dourado, mas sua cabeça não totalmente. O brilho fraquejava em sua face. Eu conseguia ver o rosto real de Aron por debaixo do tom dourado, algo antes impossível. Meus olhos traçaram um caminho de Aron até Melody. 

-Sua força vem dela? - o corpo inteiro de Aron começou a tremeluzir - Você não tem o direito de se aproximar de Melorry! 

Minha cabeça foi sacudida. Meu corpo respondia Aron dizendo "não".

-Ela não é Melorry, Ariel. - Lucius surgiu atrás de Aron e pôs a foice rente ao seu pescoço.

A criança transparente, o espírito aliado de Lucius, flutuava ao lado de sua foice de lâmina tripla, tocando seu cabo.

-Eu reconstruí sua alma. Ela VOLTOU para MIM! - a voz de Aron desafinou.

Quando Lucius moveu-se na tentativa de cortar o pescoço de Aron, o tempo pareceu congelar. Tudo se moveu mais devagar, exceto Aron. Mais pedras surgiram pelo teto e aderiram ao corpo do anjo. A cor dourado desestabilizou, alternando entre dourado e bronze. Uma explosão de energia jogou a mim e Lucius para trás. Dentro de minha mente, meu corpo sofreu o mesmo efeito. Fui jogado para longe. 
Quando voltei a levantar, eu não via sinal da tela. Não fazia ideia do que acontecia do lado de fora. 

-Alô? - chamei.

Por experiências passadas, eu já sabia que era inútil, mas não desisti de tentar.

-Alguém? Elfo de óculos? Árvore falante? Folhas? - continuei a chamar enquanto andava sem rumo.

Eu andava na direção de onde eu esperava ser de onde eu parti. Ter algum som para me guiar seria muito bom, mas não havia nada além do mais absoluto silêncio. Bom, pelo menos era o que eu pensava, até ouvir aquilo.
Um som de flauta. Muito desafinado, mas era de longe uma flauta doce. Corri em direção do som imediatamente.
Conforme eu corria, o som aumentava e aumentava. Parei imediatamente ao ver algo inesperado. Uma porta. Tratava-se de uma porta branca comum, simples, com um enorme cadeado jogado a seus pés. Lembrei-me imediatamente da porta que eu vira mais cedo, quando tive contato com a pedra das almas. Infelizmente (ou seria felizmente?), não era a mesma porta. A porta que eu vira era vermelha com uma maçaneta rosa. O quê seriam estas portas?
Respirei fundo e toquei a maçaneta. Percebi algo. Não havia mais som de flauta alguma. 

-Oi? - chamei.

Ninguém respondeu. Entendi como um "pode entrar". Girei a maçaneta e escancarei a porta. Do outro lado, havia um quarto. O susto que levei não era devido a ter um quarto em minha mente, mas sim devido as coisas guardadas nele.
Entrei a passos curtos. 
O teto era gigantesco, extremamente alto. No topo do quarto haviam correntes quebradas. Perguntei-me o que deveria estar preso lá em cima.
Espalhado pelo chão e pela parede, havia um monte de armas. Algumas enferrujadas e mal-forjadas, outras impecáveis com detalhes incrivelmente bem trabalhados, lâmina afiadíssima e cabo de couro reforçado. Entre as armas, reconheci uma. A mesma arma que meu corpo usava do lado de fora, na batalha real.

-Este é o quarto da "coisa" lá fora? - perguntei-me. 

Não havia muitos móveis típicos de quartos. Resolvi chamar aquilo de cela
Ao mover meus olhos ao redor, me deparei com uma pilha imensa de cadernos. Aproximei-me e peguei um. Não esperei para abri-lo. 
O caderno estava lotado de símbolos estranhos, dentro de formas circulares, pintados de tinta preta. Continuei a folhear. Cada página continha um símbolo diferente, alguns até semelhantes mas não iguais. 
Peguei outro caderno. Continha palavras que eu não conseguia ler. Eu conhecia aquelas "letras" de algum lugar. Eu já as tinha visto antes, com certeza. 
No resto do quarto, somente mais armas, cadernos de anotação e... um nome. Um nome gigantesco escrito na parede com tinta preta. 
Rexion.
Um calafrio percorreu por minha espinha. Meu corpo travou. Eu não conhecia esse nome, mas ler ele, vê-lo na minha frente, fez algo comigo. Mais imagens irromperam a visão de meus olhos. Era uma máscara. Uma máscara branca assimétrica. De um lado, era uma máscara comum, com o buraco para os olhos. Do outro lado, possuía riscos crescentes diagonais, como se tivesse sido arranhada pelas garras de algum animal selvagem, um tigre talvez.
Ver aquela máscara fez meus olhos lacrimejarem. Levei minha mão para o rosto, limpando meus olhos, e encarei as lágrimas, perplexo. 

-Por quê? 

Ouvi um estalo. Saí do quarto imediatamente e corri atrás dele. Conforme eu avançava, pude notar respingos negros no chão. Tinta, talvez? Eu pensava que tudo vaporizasse antes de sujar o chão. Quem desligou o modo faxina?!
Quando parei, encontrava-me diante de mais uma porta. Esta era completamente rubra e também tinha um cadeado aos seus pés. Ou melhor, uma porção de cadeados. 
Tive a sensação de receber um soco no meio da barriga. Curvei-me de dor, apoiando minhas mãos na maçaneta da porta. Acidentalmente, eu a abri, caindo com tudo dentro da nova sala. 
Ao levantar a cabeça, deparei-me com fogo. Muito fogo. A maior quantidade que eu já vira em minha vida. Não havia muito na sala, além do fogo e uma única trilha, uma única passagem por onde eu deveria seguir. Respirei o mais fundo possível e corri pela trilha. Normalmente, o fogo, as cinzas e os gases criados por eles não me afetariam, mas ali pareciam trancar meu ciclo respiratório. Conforme eu corria, a trilha fechava-se de pouco em pouco. Chegou um momento onde não havia mais espaço para caminhar sem tocar o fogo. Continuei a avançar, sem ligar. O fogo queimava meu corpo, mas não de uma maneira dolorida. Era como se puxasse-me para trás, impedindo-me de prosseguir. 
Só avancei. Sem olhar para trás. 
E então, caí. A trilha acabou sem eu nem notar. Fui mergulhado em um poço de fogo e lava. Senti-me novamente dentro do vulcão Kilauea. A sensação era a mesma daquele dia. A sensação de poder, o bem estar, o prazer de ter meu corpo consumido pelas chamas. Meu primeiro impulso foi fugir, tentar livrar-me do lago de fogo, mas não consegui. Eu era atraído por aquele lugar. Não conseguia sair. Não tinha vontade de sair. 
Soltei minha respiração. Eu a mantinha a toa. Respirar não era necessário lá em baixo. Não deveria ser necessário em lugar algum de minha mente. Eu continuava a praticar a ação por pensar ser o certo. Bem, eu estava errado. 
E então, ouvi uma voz:

-É bom, não é?

Logo à minha frente, um par de olhos flamejantes surgiram em meio ao fogo. Eu não os temi.

-Quem é? - limitei-me a dizer.

Senti meu corpo enfraquecer, minha visão embaçar e minha vontade lentamente deixar de existir. Era como ter minha força vital deixando-me para sempre.

-Onde acha que está? - a voz alta e forte perguntou, ignorando minha questão.

Meu corpo começou a esfriar, embora eu estivesse mergulhado em chamas.

-Minha mente. - respondi-o.

-Seja específico. - a voz pressionou.

Não respondi. Não sabia a resposta.

-Não deveria ter tirado o cadeado. - a voz continuou, com um tom brincalhão, como se achasse a situação engraçada - Sabe, agora terá mais problemas com ele.

-Rexion...? - perguntei com dificuldade.

-Devagar, campeão. - a voz limitou-se a gargalhar - Uma coisa de cada vez.

-Quem é? - repeti a pergunta, confuso.

-Eu. Ou quase. Você entenderá logo, e nos encontraremos em breve, campeão. Até lá... Faça o favor de não manchar a linhagem. - e os olhos sumiram, embora a voz não tenha dado de fato adeus - Lembre-se. Há alguém te esperando lá fora.

Pensamentos emergiram. Como de esperado, nada fez sentido. Exceto esta última parte.
Tentei levantar minha mãos, mas algo não permitiu. Ao mover meus olhos, vi algemas incandescentes ao redor de meus braços. Não somente um par, várias algemas. Tentei lutar contra elas, mas meu corpo não se moveu. 
Senti um corte em meu peito. A luta lá fora deveria estar acirrada. Outro corte, desta vez em minha barriga. Mais um, agora marcando minha testa.
O quê eu sentia não era somente dor física, senti-me também emocionalmente e mentalmente abalado. Era como ter os golpes marcando minha alma. O quê estaria acontecendo lá fora?
O fogo acentuou-se, queimando meio corpo, mas mesmo neste momento, eu não sentia calor. Tive que observar enquanto minha camisa evaporava. Eu ainda não entendia como, mesmo com tantas transformações, minhas roupas sempre voltavam. 
Em meu peito, vi algo ser formado. Uma lasca prateada ao redor de meus ferimentos abertos. Mais delas surgiram e se agruparam, até formar escamas. Mas desta vez, o formado não foi Flamus. As escamas moveram-se até as laterais de meu corpo, formando linhas que paravam ao encontro do centro de meu peito, o lugar onde outrora havia uma joia incandescente, durante aquela forma perfeita, equilibrada entre o humano e dragão.
O fogo, de alguma maneira, refletiu minha face, de modo que eu pudesse me ver a poucos centímetro de mim mesmo. Meu rosto também estava escamado. Riscos de escamas apareceram contornando minha cabeça e descendo por meus olhos, como lágrimas.
As algemas apertaram-se mais. Minhas costas bateram contra alguma coisa, talvez eu estivesse na máxima profundidade do poço de fogo.
Neste momento, senti uma respiração ofegante em meu pescoço, seguido de um rugido em meu ouvido direito.

-Você. - sussurrei, pois não consegui falar mais alto.

Flamus contornou-me, posicionando-se à minha frente. As algemas partiam de seus braços. 

-Eu pensei que nos entendêssemos. - eu disse.

Ele balançou a cabeça devagar, de um lado para o outro. As algemas de fogo apertaram meus braços.

-O quê vai fazer...? - perguntei com dificuldade.

Flamus aproximou-se de mim e pôs sua testa próxima à minha, fitando-me com seus grandes olhos vermelhos flamejantes. Depois disso, afastou-se e rugiu ensurdecidamente. Uma onda de depressão abateu-me. Minha vontade era a de me prender no canto de uma caverna isolada e permanecer lá pela eternidade.
As algemas começaram a mover-se, desaparecendo entre um brilho laranja exalado pelas escamas de Flamus. Eu estava sendo arrastado junto com elas. Eu seria consumido pelo meu eu-dragão. 
Tentei lutar, mas meu corpo não se movia, minha mente não esboçava vontade. Lentamente, vi Flamus rugir e crescer a medida que eu ia me aproximando. Demorei a notar que com o tempo Flamus desapareceu e foi substituído por uma espiral vermelha crescente. Com um olhar monótono, não pude fazer nada para impedir meus braços de afundarem até não conseguir mais vê-los. O resto de meu corpo ia logo atrás, quando ouvi uma voz.

-A guerra está ganha. Mas devo admitir: você deu trabalho.

Senti um corte percorrer minhas costas em direção de meu pescoço. 
Era a voz de Aron.
As algemas pararam. Meu corpo, agora com os braços e pernas afundados no vórtice de fogo, começou a arder. Todo aquele tédio, monotonia e angústia deixou meu corpo e foi substituído por uma emoção muito conhecida por mim: raiva.
A imagem de Melody, Kathryn e de todos os outros, seus estados após eu deixar o campo de batalha, ficaram cravadas em minha mente.
Olhei para cima e surpreendi-me ao ver um domo triangular ao meu redor, como uma pirâmide de vidro. Lutei para me libertar com todas as minhas forças.

-FLAMUS! APAREÇA! - eu gritei.

De alguma maneira, eu havia parado contra o chão e nem havia notado. Sem pensar, continuei a lutar para me soltar. Meus braços foram sendo afrouxados e, na tentativa de puxá-los, acabei de olhos fixados no vórtice. Vi minha imagem lá dentro. Sozinho, deitado em posição fetal enquanto fogo me consumia e uma camada espessa de lava escondia meu corpo escamado. Minha pele tinha sido completamente substituída por escamas. Senti medo de mim por achar aquilo... tentador. Sacudi a cabeça, em negação. Flamus me arrastava para lá, mas não iria conseguir. Não havia motivo algum para eu querer continuar ali.
Com muito esforço mesmo eu consegui libertar uma de minhas mãos, mas minha vitória não durou, pois de dentro do vórtice, duas mãos agarraram meus ombros e tornaram a puxá-los. 
Ainda encarando minha imagem, não desisti de lutar. Era como ser sugado por areia movediça. Eu já pensava não conseguir mais seguir em frente, quando ouvi um tic em meus ouvidos. Gritando, arranquei as mãos de meus ombros e levantei-me. Corri para longe do vórtice até bater de cara com o domo triangular. Era sólido como metal, mas era possível ver através dele como vidro. 

-Tem certeza de que quer fazer isto? - uma voz conhecida perguntou.

A mesma voz que falou comigo quando afundei no fogo. 

-Devo avisar, campeão. Quebrar esta barreira não é simplesmente criar uma rota de fuga para você. Envolve libertar um dos seres mais poderosos da era atual. Antes de prosseguir, tem certeza de que vai continuar? Pode lidar com isto?

Desta vez eu não via os olhos em lugar algum. 
Ao virar-me, notei uma figura protuberante emergir do vórtice vermelho. Uma forma dragônica erguia-se, tendo suas asas abertas lentamente. Seu corpo criava forma lentamente, moldando-se a partir de uma massa de lava espessa. Surgiu em minha frente, um Flamus nunca antes visto. 
Era idêntico à minha forma de dragão, meu eu-dragão. Mas sua forma, suas escamas... não estavam certos. Ele estava deformado. Seu corpo vibrava e oscilava enquanto tentava manter-se, mas não conseguia. Então, seu enorme olho vermelho fixou em mim.
Com um rugido, ele avançou a passos largos. Assemelhava-se a um louco psicopata quase morrendo de tanto gargalhar. Tentei recuar, mas havia uma pirâmide impedindo minha fuga. 
Ele estava próximo, muito próximo, até que começou a crescer. Tornou-se gigantesco, do mesmo tamanho que eu havia tomado durante o controle de Scarlet. A palma de sua mão foi voltada para mim.
Pensei rápido. Pulei para o lado antes de ser esmagado por mim mesmo. 

-Olha, temos que conversar sobre superioridade aqui! - rosnei.

Um arranhão se formou nas costas de minha mão direita. A dor intensa inutilizou minha mão.
Flamus ainda oscilava, mas parecia tomar forma aos poucos. Cautelosamente, ele abaixou sua cabeça à minha altura, bufando fumaça disforme por cima de mim. Eu não fazia ideia do que fazer. Tentei aproximar-me dele, mas foi uma péssima ideia. Num movimento veloz, tocou em minha mão dolorida com sua garra deformada. Ao toque, sua garra tornou-se sólida e impecável. Minha mão desapareceu, sendo substituída por uma prótese de fogo deformada. 

-Você absorveu minha mão? - foi tudo que consegui dizer em meu momento de espanto.

Com sua outra garra, ele tentou esmagar todo o meu corpo. Pulei para trás no último segundo e corri ao seu redor, tomando cuidado com possíveis movimentos de sua cauda.

-Por quê?! 

Senti-me mais seguro atrás de suas costas, mas era só uma segurança temporária. Flamus movia-se de maneira lenta, mas não estava parado. Ele girava em minha direção. Eu precisava fazer algo.
Ao ver as imensas paredes triangulares me cercando, lembrei das falas esquisitas. "Quebrar esta barreira...envolve libertar uma das criaturas mais poderosas desta era." foram as palavras dele. 
Minhas escolhas eram escassas. O gigantesco dragão alguns metros a minha frente negavam completamente minha capacidade de pensar com clareza. Ignorei os avisos e tentei quebrar a parede com meus punhos. Como de esperado, o fracote aqui não conseguiu fazer um arranhão sequer.
Agora frente-a-frente comigo, Flamus rugiu novamente. A maioria das pessoas rezaria num momento destes. Eu? Eu corri com tudo na direção do monstro distorcido. Ele desviou. Como resultado, acabei beijando a parede.
Atordoado, caí para trás. Flamus abria sua mão disforme sobre mim, descendo-a devagar, pronto para me dizimar a nada e transformar seu corpo em sólido.
Neste momento, senti uma presença extra. Pelos olhos de Flamus, percebi que ele também. Não vi como. Não vi onde. Não vi quem. Não vi por quê. Mas dois objetos caíram de algum lugar do teto e pousaram como folhas de papel sobre meu peito machucado por novos ferimentos, resultados da batalha lá fora
Um arco e uma flecha. Ter uma mão direita funcionando seria extremamente útil em um momento destes.
Alarmado, Flamus fechou o punho e desceu sua mão, na tentativa de me esmagar, como uma pessoa prestes a quebrar o relógio despertador por acordá-las as cinco da manhã. 
Do fundo de meu peito, uma explosão desencadeou dentro de mim. Uma última tentativa de sobreviver, uma última tentativa de lutar contra Flamus - que merecia aprender uma lição!
Peguei impulso e levantei num salto, quase perdendo a cabeça pela mão de Flamus, aterrissando desastrosamente no chão. A batida do punho do dragão criou um tremor que terminou por me derrubar. Desperto, levantei e corri na direção oposta à Flamus, com o arco e flecha milagrosamente em minha mãos. 
Tentei segurar a flecha com a mão direita, a deformada, absorvida por Flamus. Ela tremia no início, eu agia como se nunca tivesse tido este órgão multi-tarefa maravilhoso chamado mão. Por sorte, acostumei-me rapidamente.

-Eu não tenho outra escolha. Tenho que sair daqui e você tem que voltar para o buraco de onde veio! - exclamei.

Obviamente, Flamus não curtiu a ideia. Azar para ele.
Corri em sua direção com tudo. Puxei toda a força e velocidade que eu podia usar para fazer um único ataque que deveria por um fim na ira de Flamus. Era minha única chance.
"Eu vou te derrotar e depois sair daqui, Flamus!" com esse pensamento em mente, corri em sua direção.
Desta vez, ele não desviou. Uma barreira de fogo apareceu logo a minha frente. Ignorei-a e continuei a avançar. Ao passar por ela, senti-me uma torrada dentro da torradeira. Flamus rugia enquanto usava seus braços e cauda para tentar me esmagar. Com muita, mas muita, sorte, consegui fugir dos ataques. 
Sem perder o embalo, percebi a posição de sua cauda. A inclinação estava em um ângulo perfeito. Sem pensar muito - não havia tempo para isto - pulei em cima de sua cauda e corri em direção de sua cabeça.
Meus pés automaticamente fraquejaram ao ter contato com as escamas de Flamus, mas não ousei parar de seguir adiante. Bolhas e outras irregularidades eram formadas pelo corpo disformado de Flamus, eu só tive mais dificuldade para seguir em frente, mas não me deixei parar. 

-Saiba de uma coisa, Flamus! - gritei para ele.

Seu braço foi levantado, na tentativa de me pegar e consequentemente esmagar-me, mas Flamus não conseguiu alcançar a ponto onde eu corria em suas costas. Normalmente, minha coluna mantinha-se parcialmente ereta quando usando a forma de Flamus, mas neste momento ele não tinha tal habilidade. Mantinha-se curvado, o que somente facilitou um pouco minha travessia.
Eu alcançara a altura de seus ombros quando Flamus abriu suas asas ao máximo e impulsionou para o ar. Fui jogado para cima e bati contra o topo do domo triangular. 

-Saiba disso! Quem manda neste corpo sou EU! - exclamei enquanto caía em sua direção como um foguete.

Desajeitado, preparei o arco e a flecha com a maior rapidez possível e atirei em seu olho aberto. O rugido de dor emitido foi tão alto, tão estrondoso, que as paredes do domo chegaram a tremer. 
Uma fissura foi aberta em seu olho, um enorme ferimento que não parou de se expandir. Sem controle de minha rota, continuei caindo. Caí de cabeça em seu olho ferido. 
Era de se esperar que eu quicasse e caísse no chão, mas não foi bem assim. Eu afundei. Era como afundar em uma piscina térmica vermelha. O corpo de Flamus desmontou-se no chão. Meus olhos foram fechados.  


...

Agora abertos, me vi num campo desértico. O chão aos meus pés fumegava e brilhava, como pedras vulcânicas. A única vegetação vista eram árvore. Suas folhas pegavam fogo. 
A poucos metros de mim, a forma comum de Flamus me encarava de braços cruzados.

-Você perdeu. - eu disse.

Ele fez que sim com a cabeça.

-Não entendo por quê precisava brigar comigo. Deveríamos ser um só. 

Um corte profundo abriu-se em minha coxa. Senti uma lâmina sendo enterrada em minha perna. Caí no chão, mas fiz o possível para não demonstrar fraqueza.

-Eu... Sou o dono deste corpo. - corpo este que estava agora tremendo - Você tem que saber seu lugar, Flamus.

Novamente, ele assentiu.
Uma mão passou por trás de seu pescoço. Vi um homem alto e robusto surgir. Ele possuía cabelos lisos, bagunçados e negros com um tom alaranjado, e intensos olhos vermelhos que eu já conhecia. 

-Parabéns, campeão. - ele sorriu - Era disto que eu estava falando. Você deu um grande show aqui.

O homem tinha barba feita e um sorriso semelhante ao meu esboçado no rosto - é difícil dizer isto sem ter um espelho para comparar, mas imagino eu que seja verdade. Vestia um traje de batalha simples de cor prateada, com um símbolo peculiar desenhado na couraça da armadura. O símbolo era repetido e espelhado em ambos os lados da armadura, e eu o conhecia. As marcas que haviam surgido no corpo de Flamus durante o incidente com as chamas azuis. Quem era aquele homem misterioso? Por estar em minha mente, deveria tratar-se de um conhecido. Mas quem?

-Não posso dizer quem sou agora, pois ele ficaria desapontado. Mas você realmente tem o potencial que me foi falado, devo admitir. - o homem elogiou.

Meus joelhos fraquejaram e eu caí no chão com a cara virada para o lado. Pude ver um vulcão ao fundo. Ambos o homem e Flamus aproximaram-se de mim.

-Ainda precisa treinar mais resistência. Esse é um ponto forte nosso, sabe? Mas, como você fez um grande feito para seu crescimento, o quê demorou mais anos do que devia, devo dizer... Vou ajudar. 

"Nosso?"

-Nos veremos daqui a algum tempo. Lhe farei uma proposta. Caso aceite, espero que esteja pronto. Até lá, tome conta dele e lembre-se: você sempre pode contar com suas chamas. - por fim, ele virou de costas e abanou para mim, despedindo-se.

Reparei em uma longa cauda de escamas negras balançando atrás dele. Por fim, ele desapareceu. 
Logo em seguida, Flamus foi substituído por uma nuvem de luz vermelha, logo após a saída do estranho homem. A luz vermelha ofuscou meus olhos. Por algum motivo, ela esta a se aproximar.

...

Em um susto, abri os olhos. Eu estava jogado no chão, agora não mais branco, mas sim manchado de sangue. Meu sangue. 
Eu estava sozinho. Sem mais Flamus. O vórtice também havia se fechado.
Por algum motivo, eu não sentia mais dor alguma, embora meu corpo estivesse todo ferido e ainda sangrando. Levantei-me com cuidado e caminhei até uma das bases do domo. Respirei fundo e toquei em sua parede. 
Todo o domo foi estilhaçado em uma explosão de vidro e vento. Uma sombra vermelha passou por debaixo de meus pés e correu em alguma direção. Resolvi segui-la. 
Não fui muito longe. A sombra era rápida demais para mim, de modo que não consegui acompanhá-la e acabei ficando para trás. Ela simplesmente desapareceu no espaço em branco.
Sem saber para onde ir, procurei por alguma coisa, qualquer coisa. Não havia nada. A passagem de fogo por onde entrei havia desaparecido. Não encontrei o lago de chamas em lugar algum, muito menos a porta por onde entrei.

-Flamus. - falei comigo mesmo em voz alta.

Este nome simplesmente foi dito por mim, sem qualquer explicação. Isso me foi bom, afinal de contas. Ao dizer o nome em voz alta, outra palavra veio a mim. Uma palavra a muito tempo buscada, que minha memória se recusava a lembrar. 
Burst.

-Flamus. - respirei fundo antes de continuar - Flamus BURST

O branco de minha mente tremeluziu entre amarelo, vermelho e laranja. Uma explosão de cores bombásticas que poderia ter me cegado, se não fosse uma visão tão agradável para mim. 
Tudo se desmantelou. Meus olhos foram fechados contra minha vontade. 


...

Quando os abri, via uma lâmina apontada a poucos centímetros de meus olhos. Quem a segurava era Aron. O ser em meu corpo havia dado um pouco de trabalho para ele.

-Fim de jogo. De novo. - Aron falava com uma voz ensandecida.

Seu corpo estava horrível. Sangue dourado cobria grande parte de seus braços e peitoral, enquanto seu corpo tremeluzia entre o "humano" - sabemos que ele não é exatamente isto - e o "divino" - seu estado dourado no modo de "sou um Deus surtado". Algo prendeu minha atenção em seu estado: seu rosto não estava mais dourado. Ele estava normal, como da primeira vez que o vi. Eu podia ver seus olhos negros, seu cabelo cortado da metade pro lado e sua expressão de raiva intensa.
Meu estado não era muito melhor. Meu corpo todo sangrava. Eu tinha um espada cravada em minha perna. Não preciso dar detalhes sobre minha vestimenta, não é? Obviamente, eu deveria ter me fardado um pouco mais para a guerra.

-Eu não entendo como você faz isso. Ou melhor, não entendo por que você faz isso. - Aron indagou frustrado - Eu estou tentando salvar vocês e viver feliz junto de Melorry ao mesmo tempo. Vocês não tem o direito de impedir!

-Você quer matar todo mundo para fazer seu próprio mudinho, Aron. - sangue escorria de minha boca enquanto eu falava - E preciso te dizer uma coisa. Pode ser a alma de sua Melorry, mas neste momento, ela não é a mesma pessoa que você amou.

Os olhos de Aron abriram ao máximo, em um momento de histeria. 

-VAI SER TORTURADO NO QUINTO INFERNO POR DIZER ISSO! - Aron afastou a lâmina de mim e a investiu em um ataque.

Agora eu reconheci a espada. Era a usada por mim quando meu corpo estava fora de controle. No seu outro braço, uma espada exatamente igual estava cravada profundamente. Aron agia como se não sentisse nada com ela lá, mas eu sabia que por dentro ele se remoía de dor.
Desviei do ataque de Aron com facilidade. 
Ele havia posto muita força na investida, de modo que seu corpo veio para frente junto da espada. Aproveitei a situação e agarrei seu braço durante a passagem, arrancando a lâmina de suas mãos e jogando-a longe. Imobilizei os movimentos de seus braços de alguma maneira. Eu realmente não fazia ideia de como imobilizar alguém, mas pelo jeito, eu havia aprendido.
No estado de meu corpo, fazer aqueles movimentos gerou um desconforto nível minha pele está sendo rasgada. Engoli a dor com muita dificuldade.

-Eu sinto muito, Aron. Sua Melorry não existe mais. Quanto antes aceitar, menos dor irá sentir. - senti-me mal em dizer estas palavras, mas alguém precisava dizê-las. 

Uma explosão de poeira me afastou dele. Uma nuvem de fumaça foi erguida. Aron foi engolido por ela. Eu não conseguia mais vê-lo.
Aproveitei o momento para arrancar fora a espada em minha coxa. Foi realmente doloroso. Eu não sobreviveria muito mais tempo com tantos sangramentos contínuos. Precisava finalizar logo.
Quando a fumaça finalmente abaixou, Aron tinha pelo menos dez pedras flutuando ao seu redor.
Ao olhar através dele, percebi que Lucius havia sumido. Teria Aron notado?

-Você vai queimar, Selion. - tanto a voz, quando a forma de Aron, tremiam.

-Seria maravilhoso. - respondi com um ar de relaxamento.

Aron reprovou minha resposta. 
O chão rachou diante de Aron e seguiu em minha direção, circulando o lugar onde eu pisava. Uma parede de fumaça subiu pelas rachaduras, enquanto logo acima de minha cabeça formavam-se círculos vermelhos recheados com símbolos triangulares. 

-Pela última vez, vamos lá. - sussurrei para mim mesmo.

Ouvi um chiado, como o de uma bomba prestes a explodir. Eu não errei na comparação. Literalmente, uma explosão ocorreu não muito acima de mim.
As palavras escaparam de minha boca instintivamente.

-FLAMUS BURST! 

Os círculos foram ativados, criando uma barreira ao meu redor. A fumaça reagiu à explosão, intensificando-a. Logo, recebi todo o dano de uma explosão em massa. 
Uma pessoa normal não teria saído vivo daquela barreira de energia. 
Ao fim da explosão, a barreira se desfez e os restos da explosão foram espalhados. 

-Permaneça morto. - Aron arfava.

Não esperei a fumaça dissipar. Voei na direção de Aron com meus punhos flamejantes preparados para lhe devolver os golpes. O espanto de Aron foi tanto, que todas as pedras flutuando ao seu redor caíram no chão, inutilizadas. De relance, enquanto afastava Aron com uma série de golpes, vi uma das pedras mover-se na direção oposta a minha. Na direção de Misake.

-Isso não é... - Aron mal conseguia falar - ...POSSÍVEL! 

Aron pôs os pés no chão e freou o ataque. Ele tocou a palma de sua mão em meu ombro em resposta aos meus ataques. Meu braço esquerdo foi torcido de uma maneira extremamente dolorosa e desconfortável. Mas eu ainda tinha um braço bom e muita força de vontade.
Eu estava novamente na forma característica das chamas azuis. O cristal em meu peito brilhava intensamente e pulsava a cada ataque. Estranhamente - ou talvez nem tanto - eu me movia muito mais livremente agora. 
Acertei um soco verticalmente na barriga de Aron, levantando-o no ar. Não foi uma das ideias mais brilhantes. Ele aproveitou a posição para revidar os ataques.
Após um movimento de cruzamento com os braços, duas espadas douradas apareceram, sendo seguradas por duas mãos gigantescas feitas de fios de metal dourado. As espadas fizeram um movimento em conjunto, ameaçando cortar minha frente e costas horizontalmente. 
Por sorte, pude contar com minhas asas para tirar-me do chão nesta hora. 
Para meu azar, algo deu errado. Minhas asas fraquejaram e eu caí no chão com tudo. Estaria eu machucado demais? Isso acabaria afetando a minha luta?
Por mais que a dor intensa pudesse ser disfarçada, que eu não chegasse nem a lacrimejar, eu estaria mais fraco neste momento?
Abafei estes pensamentos em minha mente e os ignorei. Não era hora disto.

-Terceiro round, Aron? - sugeri.

-Não saímos do primeiro. 

Seis pontos coloridos brilharam em seu peito. A massa de cores deixou seu corpo em espirais finais e encontraram-se no ar, formando uma esfera brilhante de múltiplas cores. Dentro da esfera, o brilho criado pelas pedras chocavam-se, desenhando formas no espaço. Em questão de segundos, aquele emaranhamento tornou-se formas retangulares irregulares sustentadas por um núcleo faiscante.

-Uau, Aron... Não sabia que você tinha virado uma garota mágica arco-íris! - zombei, cutucando sua raiva.

Aparentemente, funcionou. 
Poderia ser só uma provocação besta, mas tinha um fundamento. Quando se está com muita raiva, você tende a não prestar muita atenção a detalhes. Detalhes estes que no momento chamarei de Misake e Lucius. 

-Pode v... - eu estava para completar a frase, mas a arma criada por Aron foi mais rápida, acertando em mim algo aparente à um prisma de cristal.

Outros prismas voaram em minha direção. Em questão de décimos de segundo, minha cara teve um encontro com o asfalto rochoso irregular onde eu pisava a poucos momentos. Os primas rebatiam e atacavam sem dó, enquanto Aron ficava parado assistindo, mantendo a mão sobre o braço ferido.
Dentre minhas escamas, fogo azul emergiu, incendiando os prismas, fazendo-os afastar. Por alguma razão, eu sabia que não era suficiente.
Logo, descobri o quão certo eu estava - isto não é, nem nunca foi, uma boa notícia. Os prismas mudaram de forma, tornando-se triângulos pontudos com extremidades pontiagudas voltadas em minha direção. 
Atrás deles, Aron agora criava alguns artefatos para tornar minha vida um pouco mais complicada. Ao seu dispor haviam um canhão flutuante de luz, mais parecido com um vaso de plantas sem fundo, uma série de portais circulares posicionados em lugares extremamente inconvenientes para mim e mais uma coleção inteira de espadas e lâminas afiadíssimas. 
"Conto com você, Flamus." eu disse em minha mente, esperando que ele estivesse por lá.
Não vou ser apagado novamente.
Esta voz já me era conhecida. Seria... o tal Rexion?
Uma dor de cabeça imensa me abateu. Caí de joelhos. Uma das pedras estilhaçadas do solo fincou minha perna. Se minhas escamas não fossem tão resistentes, eu não conseguiria mais agir com a destreza necessária nesta batalha.
"Colabore! Por favor!" eu pedia.
Aron moveu-se. 
Instintivamente, levantei e avancei como um jato em sua direção. Passei pelos triângulos flutuantes tão rapidamente que não puderão me detectar para um ataque. As lâminas foram lançadas como mísseis, enquanto de dentro dos portais as mãos armadas eram invocadas para parar meu avanço. 
Não tive outra escolha a não ser fazer outra rota. Inclinei minhas asas e decolei para cima, sendo perseguido por todas as lâminas e espadas. Uma delas cortou minha asa, mas mantive o controle para não perder o rumo do voo. Eu aproximava-me de Aron quando uma luz ofuscante cortou minha visão. Eu esquecera-me completamente do canhão de luz. 
Sem poder enxergar, voei para o alto esperando recobrar a visão.
Na tentativa de uma proteção ao menos básica, deixei o fogo correr solto para fora de mim. Continuei a traçar caminhos aleatórios até que minha visão voltou. 
Eu não estava avançando, mas sim parado. Meu corpo imitava uma erupção, cuspindo bolas de fogo azul pelo céu em direção do solo. 
Uma delas acertou as lâminas, que tornaram-se cinzas imediatamente. 
Com o corpo ainda exalando este poderoso fogo, voei na direção de Aron, cortando as mãos com minhas garras. Elas simplesmente sumiam ao meu toque letal.
Finalmente, cheguei a Aron. Choquei-me com ele, que fazia esforço para manter-se dentro de uma proteção semelhante ao primeiro escudo usado. 
Sem fraquejar, explodia em mais chamas azuladas enquanto forçava uma abertura para o ataque decisivo contra Aron. 

-Um pouco nostálgico? - perguntei.

Do jeito que as coisas andavam, ninguém terminaria essa batalha. Ficaríamos para sempre neste confronto, exaustos e feridos. 

-Talvez. Mas o quê acha deste truque? - Aron parou de manter seu escudo.

De início, não entendi. Então, lembrei-me de sua nova arma.
Os quatro triângulos mortíferos apareceram e pressionaram meu corpo. Não consegui suportar e acabei novamente no chão. O diferencial desta vez foram os triângulos voadores cristalinos abrindo caminho entre minha escamas, quase perfurando-as.

-Desista. Estes cristais são feitos da pura essência das pedras. Você não pode com eles, não pode detê-los. Nem você, nem sua outra metade, nem seu poder divino. - Aron pronunciou esta última palavra com um nojo absurdo.

Divino. Várias vezes esta palavra foi atribuída à Flamus. Eu ainda não entendia o porquê.
Os cristais começaram a girar como brocas. Logo, atravessariam meu corpo. Nem Flamus poderia me fazer sobreviver a isto. Busquei por uma alternativa. O fogo não funcionaria desta vez, embora as brasas em meu peito brilhassem intensamente, prontas para pulverizar os malditos cristais tele-guiados. 
Você sempre pode contar com suas chamas, fora o que o homem de cauda negra disse. 
Eu confio nelas. Confio em Flamus. Então, talvez...
Concentrei-me nas chamas, no fogo, no calor ao meu redor, criado por mim, já sentido por mim. Canalizei estas forças, mesmo com toda a dor sentida por mim e o dano sendo causado pelas "brocas" de cristal.
Mas tudo foi em vão. Pois tudo parou quando eu e Aron notamos uma terceira presença no meio da batalha.
Parada com uma expressão confusa em seu rosto, estava Melody.

-Melorry! - chamou Aron.

-Melody! - eu corrigi.

Minhas chamas reacenderam mais fortes do que nunca. 
"Não é hora de fraquejar" eu disse para mim mesmo.
A distração criada por Melody abalou Aron, fazendo as brocas perderem a força. Arranquei-as de meu corpo, que agora ficou marcado com quatro pontos interligados, e as arremessei na direção de Aron como se fossem dardos. Aron não as notou, mas mesmo assim foram puxadas de volta para seu núcleo.

-Melorry? - Aron parecia confuso.

A verdade deveria estar lhe dando um soco na cara. E a mim também. Por que ao olhar para ela, uma dúvida me surgiu. De fato, quem ela seria agora? Melody ou Mellany? Quem estaria no controle?
Dependendo desta resposta, a vitória ou a derrota poderia ser eminente. 

Nenhum comentário

Postar um comentário