domingo, 27 de setembro de 2015

As Pedras de Elementra - Parte 2. Capítulo 26 - Epílogo (Capítulo Sakura)

26. 2. Epílogo

Sakura
Parte 1: Contra-ataque doméstico.


A guerra começou derradeiramente. Por escolha própria, fui deixada para trás.
"Era melhor assim" foi o que pensei.
Blanorcana, a integrante alienígena fugitiva de nosso grupo, foi fortemente ferida. Minha mãe é formada em medicina e, com o passar dos anos, eu aprendi certas técnicas sobre a área de enfermagem. Tais técnicas vieram a calhar, afinal.
Selion, Melody e os outros partiram a algumas horas. Durante todo o tempo, cuidei de Blanorcana, que permanecera inconsciente. Seus ferimentos não eram o maior problema. O estrago real não foi em seu corpo. Por algum motivo, eu sentia uma péssima vibração vindo de Blanorcana. Ao aproximar-me dela, meu sorriso desaparecia conforme pensamentos sombrios e obscuros preenchiam minha mente. Para não ser seriamente afetada, era obrigada a afastar-me dela por alguns momentos, enquanto tratava dela.
Os mascotes ajudavam-me. As fofas bolinhas de pelo de Selion me animavam, neutralizando os sentimentos ruins expelidos por Blanorcana. Saladin e Frank permaneciam do lado de fora, de guarda. Nunca se sabe quando um inimigo vai resolver atacar de surpresa.
A noite caiu rapidamente. Não presenciar o céu mudando de azul para laranja, ao anoitecer. Infelizmente, quanto mais a noite surgia, pior Blanorcana ficava. Quando a lua posicionou-se no céu, sem a interferência do brilho do sol, Blanorcana começou a suar frio e a murmurar palavras como "me ajude" ou "fique longe de mim". Seria um pesadelo?

-Snowy? - chamei.

Ele era meu fiel ajudante no tratamento de minha paciente. Eu usava bastante de água e gelo para no processo, providenciado por ninguém menos que Snowy. No caso da água, necessitávamos da ajuda de Firus, mas fora isto, Snowy era o único mascote que me ajudava. Mas, além dele, ainda havia Olive. A menina resgatada por Selion e Kathryn. Ela permanecia na sala principal, atualizando-se sobre todo o progresso do mundo nos últimos séculos. De vez em quando, eu a chamava para auxiliar-me com alguma tarefa simples, mas durante o resto do tempo, preferi deixá-la a sós com o novo mundo.

-Snowy! - chamei novamente.

Normalmente, ele comparecia assim que eu gritava para ele. Estranhando sua demora, saí do quarto e fui procurá-lo. Passei pelo corredor e dei uma rápida olhada na sala de estar. Olive continuava abismada com a televisão e seus programas.
Ao chegar à cozinha, olhei pela janela. Snowy construía uma barreira de gelo, soprando o ar gelado dentro dela para fora. Outras das bolas de pelo estavam reunidas lá. O vermelho, Cannon, e o preto, Firus.
Corri até eles. 

-O quê estão fazendo? - quase tropecei em uma raiz no caminho.

Era estranho, pois não havia árvore alguma por perto. Provavelmente pertencia a alguma das árvores do bosque logo a frente.
Foquei no problema. Surpreendentemente, o problema também focou em mim.
Haviam criaturas do lado de fora da barreira de gelo. Eu via três lobos cinzentos com enormes presas e garras amarelas tentando quebrar a barreira e, próximo deles, um lobo humanoide apoiado nas duas pernas dianteiras. Este último estava parado, olhando para mim por baixo de uma máscara. Eu conhecia aquela máscara. Era uma máscara de baile vermelha e preta com um nariz avantajado, que cobria sua testa e o espaço ao redor de seus olhos. Por baixo dela, eu era penetrada pelo olhar maligno de seus olhos verdes.

-Grandark?! - pasmei.

Ele moveu seus dedos peludos até a boca e pediu silêncio, com uma expressão ameaçadora.

-Essa não, essa não, essa não, essa não... - repeti em pânico.

Desesperada, procurei por uma solução ao meu redor. A casa estava completamente cercada por um grande iglu de gelo. Snowy o fizera muito rápido mesmo! Era impressionante, mas não podia apreciar seus feitos agora.
Comigo estavam Saladin, Cannon, Snowy e Firus. Era necessário ser rápida.

-Cannon! O quê você faz? - abaixei-me para ele, suplicante.

Ele pareceu confuso. 

-Vamos, preciso de sua ajuda! 

Então, Cannon pulou em meu ombro e lambeu minha bochecha.

-Isso seria muito fofo, caso eu não estivesse prestes a morrer. - minha respiração ofegava.

Eu estava sozinha pela primeira vez com um inimigo. Dentro da casa, havia duas pessoas indefesas. Eu era responsável por elas. Eu me voluntariara para cuidar delas. Mas em momento algum eu esperei ter um traidor do Grand Elementra e seu pequeno bando de lobisomens batendo na porta dos fundos.

-Tia Sakura? - Olive chamou.

-Não venha até aqui! - alertei.

Era tarde demais. Ela já aproximava-se de mim. Ao ver os lobisomens, esperei que Olive ficasse assustada e correria para dentro de casa. Eu errei.

-Aqui. - Olive alcançou minha espada para mim.

A tamanha tranquilidade de Olive havia me apavorado mais do que o ataque de lobisomens.

-Como pode estar tão calma? - indaguei, agarrando a espada.

-Estive muito tempo sozinha na ilha. Toda noite era um pesadelo. Criaturas como estas não me causam mais medo. - ela explicou, acariciando Cannon.

Fiquei extremamente triste pela história de Olive.
"Ela sentiu tanto medo, que agora nada mais a assusta."
As vezes, o mundo pode ser muito cruel.
Empunhei minha espada. 

-Cannon, é a hora de mostrar o que você faz. - pedi - Saladin, Frank sabe sobre os ataques? Diga para ele comandar os outros. 

Saladin imediatamente circulou a casa, voando.
Cannon agiu. Ele pulou de meu ombro na direção da barreira de gelo, atravessando-a. Foi um movimento muito veloz. Os lobisomens não puderam acompanhar. Imediatamente, Cannon fez a volta em uma das criaturas e a empurrou contra a barreira de gelo, dando-lhe uma cabeçada. A criatura atravessou a barreira, junto de Cannon. As outras continuaram seu ataque, agora em um ritmo frenético. Grandark somente observava.
Corri na direção do lobo humanoide. 

-HYAA! - gritei enquanto cortava o ar em um movimento circular, por fim acertando-o.

A criatura rolou pelo chão após meu ataque. Seu alvo era Snowy, que continuava a fortalecer a barreira. Firus intrometeu-se em seu caminho com o corpo pegando fogo. Dois segundo depois, Firus era uma bola de fogo mordendo o braço de um lobisomem. Aproveitando o momento, surgi por trás e acertei sua cabeça com o cabo da espada. A criatura caiu no chão, inconsciente.
Grandark imediatamente começou a uivar.

-O que ele pretende fazer? - falei sozinha.

Olhei para trás, na direção da janela mais próxima. Olive observava através dela toda a ação, fazendo um sinal positivo com o polegar.

-Cuide de Blanorcana, por favor!  - pedi.

-Não sei como. - ela respondeu, nervosa.

-Só vigie o estado dela. 

Olive assentiu e desapareceu. 
"Certo, agora posso me focar no real inimigo."
Tentei focar meus olhos em Grandark, mas era impossível.

-A noite cai. - Grandark apontou para o céu - Meu exército levanta!

Os lobisomens haviam multiplicado-se. Agora não era uma pequena matilha, era um exército de lobos com garras afiadas. 
Grandark apontou para a barreira de gelo. Todas as criaturas atacaram imediatamente, rachando-o. Recolhi os mascotes e corri para dentro de casa. 
Eu precisava pensar em um plano B.

...

Eu não fui feita para comandar.
Rapidamente, os lobisomens tomaram posse do local. Fui obrigada a usar o plano reserva: ativar a tranca de segurança instalada por Polar. Ao apertar o botão, instalado em um lugar escondido e estratégico, a casa foi imediatamente vedada. Ninguém entra, ninguém sai. Um filtro especial desceu por todas as paredes, portas e janelas. Ele emitia fortes correntes elétricas. Ao aproximar-me, quase fui afetada pela eletricidade. Era possível sentir a energia exalada.
Lá fora, Grandark pensava em como prosseguir.

-Ganhamos tempo. - notifiquei aos outros.

-Blanorcana não pode se mover, então vamos proteger seu quarto ao máximo possível. - Frank sugeriu.

Sim, o corcel negro falava.

-Não há outra opção.

Guiei Olive até o quarto de Blanorcana e pedi para ela ficar lá dentro. Ela concordou, hesitante.

-Você vai ficar bem, tia Sakura? - Olive quis saber.

-É claro. - respondi com um sorriso e fechei a porta.

Snowy ficou junto de Blanorcana e Olive. Neste momento, ela deve estar selando o quarto por dentro.
Logo, o tempo acabou. De alguma maneira, Grandark provocara uma falha no filtro. Lobisomens adentraram na casa aos montes, trancando nossas rotas de fuga. 
Resumidamente, o combate foi o pior momento de minha vida. A primeira horda de lobos não foi problema algum. Porém, mais e mais deles apareciam. Cheguei a pensar que minha promessa a Olive não seria cumprida.
Durante todo o combate, Grandark não se aproximou. Sua única ação foi quando disse:

-Eu pensei que você valesse a pena. Um gigantesco engano.

Depois disso, Grandark virou-se de costas e desapareceu por trás de sua matilha de lobos, matilha esta que me cercou completamente. 
As cores do pelo dos lobos variava do preto para o castanho claro, mas uma coisa era idêntica em todos: seus olhos pretos. Olhos insanos e assustadores que revelavam o grande desejo de todas aquelas criaturas: arrancar minha vida brutalmente e usar meu corpo como jantar logo em seguida.
A medida do possível, usei minha espada para bloquear a mordida de um deles. Ao meu lado, outro aproximava-se. Saltei para trás e investi nele. Ambos os lobisomens colidiram, mas logo levantaram.

-Frank, o que faremos?! - minha voz soava exausta.

Ao redor de Frank havia um círculo de energia branca. Os lobisomens ousados que atravessavam o círculo eram afastados para longe, chocando-se fortemente contra a parede. O corcel também distribuía patadas, mas seus esforços não eram o bastante. O brilho de seu círculo mágico diminuía. Eu já conseguia vê-lo ceder. 

-Precisamos sobreviver. - ele respondeu-me.

As bolas de pelo de Selion também atacavam. Cannon empurrava quantos lobisomens conseguia para o lado de fora; Firus atacava com fogo e distribuía dentadas flamejantes; Lenny, aquele de cor esverdeada, mordia as pernas dos lobisomens e os jogava contra seus companheiros, fazendo um grande strike; e Ken, o azul, inflava-se e era rebatido por Lenny, usando os lobisomens, como uma imensa bola de praia extremamente pesada. A ajuda de Saladin também era útil. Sua voz ressoava incrivelmente alta, focada somente nos ouvidos dos lobisomens. Um por um, era possível vê-los caindo perante a voz esganiçada do animal feroz, que também distribuía ataques com seu bico e patas, enquanto voava por cima deles, inalcançável.
A batalha perdurou muito tempo, comparado com minha expectativa. Mas as bolas de pelo começaram a ficar cansadas. Os lobisomens começavam a desviar mais facilmente de Saladin. O círculo de Frank quase não existia de tão débil. Diferente de todos os outros membros, eu só possuía minha espada. Pessoas como Selion transformariam-se em uma forma magnífica e derrotaria todos eles sem ajuda. Pessoas como Melody ou Kathryn conjurariam forças mágicas destruidoras e, em cerca de poucos segundos, não haveria mais inimigos. Pessoas como Misake usariam de artimanhas para atordoar todos eles, tornando a ação de erradicá-los brincadeira de criança. Porém, eu só possuía uma espada. 
Bloqueei novamente um lobisomem. Para minha surpresa, cinco deles vieram ao mesmo tempo contra mim, de uma única direção. Minha força não era o bastante para levantar o lobisomem sob meu controle e derrubar os novos atacantes. Eu também não podia fugir daquele ataque, pois estava contra a parede. Havia acabado para mim?

-Desculpem, pessoal! - gritei, chorosa. 

Fechei meus olhos com força. Esperei ser mordida pelas criaturas. Não aconteceu. Um grande relincho tristonho foi ouvido. 

-O quê? Frank? 

Ele jogara-se na minha frente.
Os lobisomens o morderam, o arranharam... Sua magia já não mais funcionava.

-FRANK! - meus olhos despejavam lágrimas.

As bolas de pelo agiram, junto de Saladin. Todos atacaram ao mesmo tempo. E então, tudo ficou no mais absoluto silêncio. Das janelas, o brilho laranja do sol começou a invadir o nosso campo de batalha doméstico. Os lobisomens ficaram confusos e cessaram seus ataques.
"Lobisomens não se transformam somente a noite?" eu me perguntava.
O relincho produzido por Frank tornava-se cada vez mais baixo. Todos os medicamentos ficaram dentro do quarto, junto de Blanorcana e Olive. Caso houvesse alguma forma de salvar Frank, eu não a conhecia.
O chão tremeu. Todos fomos derrubados. Algo estava acontecendo lá fora, mas já tínhamos problemas demais do lado de dentro.
De dentro do quarto de Blanorcana, ouvi um grito ensurdecedor. Era a própria Blanorcana. Eu não podia entrar lá e ver se ela estava bem. Tudo que pude fazer era pedir "por favor, aguente mais um pouco" dentro de minha mente. Foquei nesse desejo, enquanto usava um tecido rasgado no chão para cobrir e estancar um ferimento de Frank.

-Aguente, por favor! - eu implorava enquanto cobria seus ferimentos.

Infelizmente, eram muitos. Eu precisava de ajuda. 
Os lobisomens uivaram em uníssono. Eles atacariam novamente ao final de seu coro. Eu podia sentir isto. As criaturinhas peludas de Selion juntaram-se ao meu redor, prontos para me defender. Saladin posicionou-se ao meu lado com sua boca aberta, pronto para nocautear alguns lobisomens com sua voz poderosa.
Os lobisomens prepararam-se e... 
Atacaram. Pularam em nossa direção. 
Então, paralisaram no ar.

-O quê? - choquei-me, com o coração aos pulos.

A luz do lado de fora da casa aumentou. Agora, ela movia-se, contornando todo o território em direção da abertura criada por Grandark. 
Engoli em seco. O quê estaria chegando? Um inimigo pior que os lobos? Um novo aliado?
Passos foram ouvidos. Todos ficamos em estado de mais absoluto silêncio. Eu só conseguia escutar os batimentos desesperados e eufóricos de meu coração.
A luz vinha da cozinha, eu tive certeza. A luz... abrira a torneira? De fato, pelo barulho da água escorrendo, era exatamente o que parecia.
Tomei coragem e levantei minha voz:

-Q-Quem está aí?! 

A água parou de escorrer. Minha tensão aumentou.
Os passos vinham em minha direção. Tok. Tok. Tok. O som de seus passos martelavam minha mente. 
A criatura surgiu. Era uma espécie de monstro reptiliano com majestosas asas. Sua forma era semelhante a de um humano, porém coberto de escamas do mais puro e limpo branco-marfim. Em seu peito e asas símbolos eram refletidos, como se a linha no meio de seu corpo fosse um espelho. Parecia com uma letra F, uma asa simples feita em arte rupestre.
As primeiras palavras da criatura foram:

-E aí, Sakura? 

"E aí, Sakura?" que tipo de criatura diz isso à sua presa?!
-Quem é você? - levantei-me com cuidado para não ferir ninguém próximo e empunhei a espada.

-Epa, calma. Sou eu, Selion. - sua cabeça dracônica desfez-se. 

As escamas sumiram e foram substituídas por pele, em uma pequena onda de chamas azuis. De fato, o rosto de Selion surgiu.
Notei seis pontos brilhantes em seu corpo, mas somente sua forma já era o bastante para questionar, por agora.

-O quê é isso? Você não era cinza? Ou vermelho? Agora é branco! Eu estou ficando daltônica? Ai meu Deus, eu tô ficando daltônica. Nunca mais verei os rangers da mesma forma! Eu nunca mais saberei quem é a rosa! 

-Calma, calma, calma! - Selion pediu, com uma expressão preocupada - Você não está daltônica. Isso aqui é... bem, eu não sei explicar. Eu aprendi a usar fogo azul agora, veja! - seu corpo pegou fogo.

Realmente, era azul. Eu sentia-me muito mais aliviada agora que Selion estava por perto, mas eu não podia negar o fato de ter lobisomens flutuando no meio do corredor.

-O quê pensa que faz aqui? E quanto a guerra?! 

Por dentro, eu estava muito agradecida por ele ter aparecido, mas achei melhor fingir que tinha tudo sob controle, embora a situação revele o oposto.

-Sakura, eu coloquei um fim nela. Veja: estas são as seis pedras primordiais de elementra. - os pontos brilhantes tornarem-se nítidos.

Lá estavam as seis pedras: duas em suas mãos, uma em cada peitoral, uma em sua testa e outra próxima da barriga.

-E Melody? E os outros? - ao falar outros lembrei-me imediatamente de Frank - SELION! Você precisa ajudar o Frank! Ele está muito ferido!

Ele travou por um instante, pensando em como prosseguir. A passos leves, ele aproximou-se do corcel negro deitado no chão e ajoelhou-se ao seu lado.

-Os ferimentos não são seu único problema, certo? 

Frank relinchou em resposta.

-Eu posso consertar isso pra você. Foi uma maldição poderosa, mas acredito conseguir reverter. Você deseja que eu faça isso? 

Somente observei. Selion parecia tão maduro e confiável falando daquela maneira... mal se percebia que era um preguiçoso desajeitado que persegue menininhas inocentes que gostam de espadas de madeira e de dar caminhadas na calada da noite.

-Melody ficará feliz. - Frank respondeu.

-Sobre isso... - Selion ficou nervoso de repente - Sakura e Frank, quero confiar aos dois uma tarefa. 

Esperamos pelo resto de suas palavras.

-Vão aceitar? Sim? Está bem. - ele confirmou a si mesmo - Nenhum membro do grupo tem qualquer memória sobre magia, suas capacidades especiais, elementra ou sobre mim. 

Todos ficamos chocados. As criaturas de pelo de Selion não entendiam suas palavras, eu notava isso por sua expressão confusa. 

-Vocês ouviram. Nenhum deles lembra de nada. Eu apaguei suas lembranças.

-Selion, como pôde fazer isso?! - levantei-me contra ele imediatamente.

-Foi preciso. 

Agora, sem as chamas e o brilho atrapalhando, eu via seu rosto nitidamente. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Seu rosto estava marcado por lágrimas escorridas a pouco tempo, mas já secadas. Ou melhor, evaporadas.

-Você entende, certo, Frank? - ele perguntou.

-Sim. - o cavalo respondeu, tristonho - Sem as lembranças, todos serão mais felizes. Lembranças de guerras nunca são boas. As de Melody, então? Ninguém deveria ter presenciado os horrores vistos por ela.

-Então, você entende. - Selion respirou fundo - Algumas memórias falsas foram postas no lugar. Frank, para todos os efeitos, você sempre esteve ao lado dela, acompanhou-a da infância até a atualidade. Você seria um... hm...

-Vizinho dela? - Frank sugeriu. 

Selion assentiu em resposta. 
"Perfeito" ele disse logo depois.
Eu ouvi suas palavras corretamente? Todos esqueceram de tudo? Eu esquecerei também? Eu não quero esquecer! Não quero esquecer minhas lembranças! 
Afastei-me de Selion, andando de costas, assustada.

-Aonde vai, Sakura? - Selion indagou.

-Não quero... Não vou esquecer... - coloquei minhas mãos em minha cabeça, protegendo-a.

-Acalme-se. Você e Frank são uma exceção. Veja bem: ainda há coisas que preciso tratar mundo afora, então não vou ficar por aqui por um tempo. Vocês serão meu meio de contato. Quero que me avisem caso algo der errado, caso precisem de mim por aqui. - Selion explicou.

-Espere um pouco. Se você desfez o Grand Elementra... Quem vai defender o planeta da Grand Destruction e das outras ameaças?! - briguei.

-Não há mais Grand Destruction ou outras ameaças. Eu percorri o mundo e consertei tudo que pude, eliminei toda e qualquer memória envolvendo elementra ou forças inumanas. O único perigo agora é o governo. Isso nem mesmo as pedras podem consertar. 

-Mas por que nós? - questionei.

-Não é óbvio? Frank é o membro mais antigo que temos no momento, com exceção de Kathryn e Melody, que merecem certo tratamento especial depois de tamanho esforço nos últimos anos. E você, um dos membros mais novos, Sakura. Você não tem memórias exatamente ruins ou chocantes, muito pelo contrário, muitas delas você deve querer guardar. Além do mais, sei que você é de confiança. 

Suas palavras faziam sentido. 
Duas pedras brilharam mais intensamente no corpo de Selion. O corpo de Frank foi curado.

-Será um pouquinho mais difícil trazer você ao normal. Está preparado? 

Frank relinchou em resposta. Selion então pôs as mãos em cima da cabeça de Frank, dando-me uma ordem antes de começar: 

-Sakura, busque um cobertor.

Não entendi o que pretendia, mas fui ao quarto mais próximo, esquivando dos lobisomens paralisados no ar, e procurei por um cobertor vago. O relinchar de Frank tornou-se escandaloso. Lentamente, tornou-se um grito. Senti-me curiosa perante a situação. Tirei o cobertor da cama mesmo e corri em encontro deles.

-Aqui temos o mais novo ex-membro do Grand Elementra: Frank Blacksel. - Selion olhava para a parede oposta à qual Frank escorava-se.

Ao voltar, Frank não estava mais lá. Eu via um homem alto e magricelo de cabelos pretos, na mesma tonalidade da crina de Frank, cortados extremamente curtos. Continuei a tomar nota da transformação que ocorrera em Frank, um dia um cavalo, agora humano. Tive de forçar meus olhos a pararem. Com um grito, joguei o cobertor em cima dele e corri para um canto oposto. A maldição desfizera-se, até aqui tudo bem. Seu corpo foi trazido para a forma humana no exato estado em que Frank-cavalo estava. Para deixar bem claro o ponto da questão: Frank-cavalo não usava roupas.

-Espera, você não percebeu o motivo do cobertor? DESCULPE! - Selion desculpou-se, com as mãos no chão.

Estremeci no meu cantinho do desespero.

-Não poderei me casar... Não poderei me casar... - eu repetia, traumatizada.

Enquanto eu tentava tirar aquela imagem de minha mente, Selion e Frank trocavam ideias.

-Meu sobrenome nunca foi Blacksel, mas eu curti. Vou adotar. - Frank articulava seus dedos com cuidado, maravilhado.

-Ótimo. E, antes que eu esqueça, aqui está o meio que devem usar para me chamar. 

Temerosa, ousei olhar para trás. Selion transferia um celular para a mão de Frank (agora um pouco menos como veio ao mundo).

-Desculpe, Sakura. - Frank e Selion pediram juntos.

Encarei um dos lobisomens. 

-Querem agradecer? Tirem eles daqui. - respondi, brava.

Todos desapareceram em um piscar.

-Ainda estou aprendendo a controlar esse poder. Agora, Sakura, e quanto a Blanorcana e Olive? - Selion acariciava Firus e Cannon - Bom trabalho pra vocês, aliás. Estou orgulhoso.

Tentei abrir a maçaneta do quarto de Blanorcana. Não obtive sucesso. 

-Faça as honras, Selion. - bufei.

Selion tocou a maçaneta e a girou. Ouviu-se um grande trincar. A porta abriu-se em um estrondo. 

-Olive, Blanorcana, Snowy! Tudo está bem agora! - notifiquei.

Mas não estava tudo bem. Olive não estava no quarto. Blanorcana chorava na cama, virada para a parede. Snowy tentava acalmá-la com lambidas em seu rosto.
Tudo que sobrara de Olive era seu vestido, coberto por uma pilha de cinzas.

-Não... - a voz de Frank fraquejou.

Baixei minha cabeça, tentando não mostrar minha expressão entristecida.

-Foi culpa... minha... - Selion encarava suas mãos - Eu... devo ter sugado a pedra dela acidentalmente... Não, não!

Ele bateu tão forte na parede, que abriu um buraco enorme nela. Agora, tínhamos uma segunda porta, para o caso de emergências. 

-Não foi sua culpa. - Blanorcana limpava suas lágrimas - Ela deixou isto para vocês. Eu realmente não sei explicar o que eu vi acontecer neste quarto. É melhor lerem.

Blanorcana levantou da cama e deu um passo. Seu corpo estremeceu e, se não fosse pela rapidez de Selion, teria caído com tudo no chão. Ela possuía um papel em mãos, um bilhete de Olive.
Frank pegou-o, completamente desgovernado por ser a primeira vez em um longo tempo a usar mãos humanas. Desdobrou-o com dificuldade, tossiu e então começou a ler:

-"Sinto muito por isso, pessoal. Vocês tiveram tanto trabalho para me trazer de volta ao mundo real... eu presenciei coisas inéditas, para mim, e fiquei completamente confusa e abalada com outras. Sei que há muito ainda a explorar e viver, mas... eu passei de meu tempo. Sou só uma pedra de areia, ao menos fisicamente. Agradeço muito por essa chance concedida, de verdade, porém, não fui feita para viver nesta época. Uma voz falou comigo e... ela estava certa. Decidi abdicar da posse da pedra. Por favor, cuidem bem dela, do mesmo jeito que ela cuidou de mim." - Frank leu - Assinado: Rosalie Freya. "Mas pode chamar de Olive."

Lágrimas escorreram de meus olhos, mas não só dos meus. Blanorcana parecia igualmente abalada. 
Olive chegara a pouquíssimo tempo, mas seu carisma nos conquistara. 
"Sempre guardaremos você em nossas memórias."
Então, lembrei-me das palavras de Selion.
Nenhum membro do grupo tem qualquer memória sobre magia, suas capacidades especiais, elementra ou sobre mim. 
Nenhuma memória. Nenhuma. Olive teria sido apagada junto delas? Pensar que Selion poderia ter feito todos esquecerem-na me deixou frustrada. Isto é, caso não tenha realmente feito.
Entristecida, virei-me na direção dos outros. 
Selion mantinha sua face abaixada, escondendo-a com suas duas mãos, enquanto Frank andou cabisbaixo até os restos de Olive, abaixou-se e agarrou a pedra das rochas. No ato de caminhar, Frank quase caiu no chão três vezes. No ato de abaixar-se, precisou sentar primeiro para estabilizar-se. No ato de agarrar a pedra, fracassou miseravelmente e deu cinco tapas no chão até enfim conseguir pegá-la. 

-Eu, Sakura, Blanorcana e Selion não esqueceremos de você, Olive. - sem jeito, leu o bilhete novamente - Ficará em nossas memórias, Rosalie Freya.

-Ela ficará, não é, Selion? - indaguei.

-Sim. Ficará. - ele levantou o rosto devagar, mostrando um misto de emoções, envolvendo tristeza, mágoa, ira e indagação em uma única expressão abalada.

Algo incomodava-o.

-Diga. Você percebeu algo, não foi? - perguntou Frank, estendendo-lhe a pedra lentamente.

-Isto aqui, - Selion agarrou o bilhete - contém o nome verdadeiro de Olive, acredito eu. Ela não sabia qual era. Nem sabíamos se, de fato, ela era alfabetizada. Depois de séculos sem exercitar leitura ou escrita, como conseguiria escrever tão facilmente? E ainda há mais uma coisa: quem falou com ela? 

As atenções foram voltadas para Blanorcana. Ela acariciava Snowy.

-Eu estava dormindo. - ela explicou, focando seu olhar em um ponto fixo da parede mais próxima - Eu enxergava trevas e as sentia correndo dentro de mim. Então, tudo clareou-se em um flash. Acordei em um susto e quase fui cegada. Com medo, virei-me para o outro lado. Olive falava sozinha, sozinha! Quando a luz diminuiu, eu tinha esse papel em cima da cama e os restos de uma doce garotinha indefesa.

A preocupação de Selion era notável. Mais um problema surgira, mas desta vez só caberia a ele a função de resolvê-lo. 

-Não esqueceremos você, Olive. - Selion forçou-se a sorrir.

Snowy pulou em seu ombro e lambeu seu rosto, deixando uma camada de neve em cima dele.

-Isso dói, amigão. - Selion disse, fazendo cafuné na pequena criatura de pelos brancos e grandes olhos inocentes - Dói muito. 

E ele continuava a sorrir.

...

"Organizamos juntos a casa" seria uma frase bonita de ser dita, mas não neste caso, porque Selion fez tudo sozinho. O poder das pedras era fascinante. Livrou-se de todos os lobisomens, transportando-os para um lugar da floresta onde, de acordo ele, as criaturas sofreriam de um tratamento especial. Não entendia sua referência.
Logo após, preparei uma refeição leve para nós quatro. Repare no uso da palavra logo. Foi o logo mais rápido de toda a minha vida. Selion devorou minha comida em questão de segundos (um grande omelete com quatro tipos de queijos, uma porção de arroz que encontrei na geladeira e aqueci e uma pequena seleção de verduras). O que servi, foi o que encontrei. Precisávamos re-estocar nossos mantimentos. Eu, Blanorcana e Frank comemos mais civilizadamente. Com exceção de Frank, ele mal conseguia mover o garfo, porém, ele ainda foi muito civilizado, em comparação a Selion.
Brincadeiras a parte, Selion parecia exausto. Eu não conseguia imaginar os horrores sofridos por ele durante seu combate.

-E quanto aos outros? - perguntei.

-Cada um em seu quarto. Todos estão descansando. - Selion respondeu, com um pedaço de arroz grudado próximo à bochecha - Gen não quis dormir, então não tive escolhe se não forçá-lo. Eu não exagero quando digo o quanto eles se esforçaram. Mereciam o descanso. 

Eu, Frank e Blanorcana nos entreolhamos. 

-E quanto a você? - tomei posição antes dos outros dois.

-Sim? - ele pareceu não compreender.

-Precisa descansar, não? - Blanorcana enfatizou.

-Ah. Na verdade, não. As pedras estão servindo de reserva de energia. Elas são ilimitadas, então não preciso de descanso. - Selion retirou o grão de arroz de seu rosto - A justiça não dorme. 

-Selion, vá descansar. - Frank pediu - Você está pondo muita pressão sobre si mesmo, não vai aguentar. 

-Relaxa, eu estou bem. Não é como se eu fosse surtar. Eu controlo Flamus, ao menos agora. 

Eu não estava convencida. Tenho certeza de que Frank e Blanorcana pensavam o mesmo.

-Obrigado pela comida. - Selion levantou-se - Agora, irei terminar meus últimos afazeres por aqui. 

Ele caminhou até Blanorcana e pediu para ver sua mão. Desconfiada, ela ergueu sua mão. Selion apontou para a pedra presa no meio de seu pulso.

-Posso tirá-la de você. Não será mais perseguida por pessoas más, correrá menos risco. Quer que eu prossiga? 

Imediatamente, Blanorcana respondeu.

-Sim! Por favor! - ela quase pulou de alegria, mas sua condição física não permitia.

As sombras haviam deixado seu corpo, levando toda aquela sensação ruim que emanava, mas seu corpo ainda sentia-se prejudicado. Em breve irá melhorar. Não há o que possa ser feito até lá.
Selion, então, pegou seu braço com cuidado e conjurou suas garras dracônicas. Lentamente, tocou suas unhas de dragão na pedra. Os seis pontos de luz coloridos, oriundos das pedras, faiscaram por seu corpo, nas mesmas posições em que estavam anteriormente. Lentamente, a pedra foi sugada para fora, conforme Selion movia sua mão. Blanorcana mordeu sua camisa durante o processo para não gritar de dor.

-Não está doendo, não exagere. É como espremer uma espinha, por mais nojenta que essa analogia seja. 

E então, a pedra foi retirada. Blanorcana foi jogada contra o apoio da cadeira. Eu conseguia notar uma pequena quantidade de vapor deixando a pedra.

-A pedra do gás. Agora você...

Selion parou. Abaixou-se no chão, com a mão tapando uma das pedras em seu peito. Ele rosnava de dor. 

-Selion? O que aconteceu? - Frank perguntou, preocupado.

O corpo de Selion foi substituído pelo de seu eu dragão. Chamas azuis e vermelhas palpitaram ao redor de seu corpo descontroladamente. Seus olhos emitiam uma luz branca extremamente forte e focada, como um farol. 
As seis pedras, até poucos segundos mergulhadas dentro de sua pele, deslocaram-se para fora, arrancando grunhidos dolorosos de Selion. Sua camisa favorita, aquela com estampa de dragão dourado, foi destruída quando as pedras de seu peito o deixaram.
Todas as seis pedras começaram um movimento de rotação no ar. Atrás delas, duas figuras surgiram em formas inconsistentes, como hologramas prestes a desaparecer. A primeira figura possuía pele bronzeada, cabelo comprido e cavanhaque, ambos da cor roxa, do crepúsculo aparente ao entardecer, e vestia um kimono laranja de cor vibrante. A segunda figura vestia uma roupa mais formal, completamente preta, possuía cabelos negros e cortados de maneira chamativa: extremamente curto de um lado, quase completamente aparado, enquanto do outro possuía cabelo comprido, jogado para o mesmo lado em uma franja e preso atrás em um rabo de cavalo curto. 
As duas figuras moviam suas bocas alternadamente, entretanto eu não conseguia ouvir som algum saindo delas. Selion, por outro lado, reagiu as tais palavras.

-Como isso é possível?! Eu ainda não acabei! Preciso da ajuda de vocês para caçar Scarlet, Grandark e o resto da trupe mal-encarada! Ravel, por favor! - Selion discutia.

A pessoa de kimono laranja juntou as mãos, pedindo desculpas, talvez. A outra pessoa começou a gargalhar, exibindo um olhar maldoso. Ambos então desapareceram. As pedras pararam sua rotação e desapareceram porta a fora, separando-se no céu e seguindo diferentes direções.
A pedra do gás e a pedra das rochas ficaram jogadas na frente de Selion. Ele as agarrou, perplexo. Vagarosamente, as pedras perderam suas cores e símbolos, tornando-se pedras comuns, daquelas encontradas nas ruas de qualquer lugar.
Selion estava traumatizado, completamente perplexo e sem reação.

-S-Selion? - chamei, com medo.

Seu corpo pegou fogo. Ele ardia de raiva.

-EU VOU ENCONTRAR VOCÊ DE NOVO, LEONAZARDTH! - o grito de Selion foi extremamente alto.

Sua fúria foi liberada em uma pequena explosão de fogo. Estranhamente, não feriu nenhum de nós, tampouco queimara algum objeto.

-Peço desculpas. - ele recuperava o fôlego e reerguia-se - Vamos torcer para ninguém ter acordado.

-Quem eram? - Frank quis saber.

-Não é problema de vocês, não esquentem com isso. Agora, é melhor eu partir. Acho difícil no mínimo uma pessoa não ter sido acordada.

Ele caminhou até a porta.

-Selion, espere! - pedi, levantando-me e correndo até ele - O quê vai fazer sem as pedras? 

-As pedras facilitavam o serviço. Agora terei de rastrear e derrotar cada um dos inimigos, separadamente. Eu pretendia juntar todos e acabar com um golpe, mas a vida foi feita de desafios, não é mesmo? - ele falava como se nada tivesse acontecido.

-O quê faremos quando eles acordarem? O quê devemos dizer? - Frank levantou uma questão importante.

-Cada um reagirá de uma forma diferente, espero eu, mas todos terão uma certeza e uma coisa em comum: são um grupo de amigos que se importam muito um com os outros. Esta casa, - Selion apoiou-se na lateral da porta - é o símbolo de seu relacionamento. Não sei que desculpa eles vão dar, mas todos conhecem uns aos outros. Esta casa será o lar de todos. Certifiquem-se de fazer tudo ocorrer bem, por favor.

-Devemos só agir naturalmente, então? - questionei.

-Tipo isso. Agora, preciso mesmo ir. Ouço movimentação nos quartos. 

-Se isso for um adeus... - respondi-o, zangada.

-Chame de um "até logo". - Selion deu um passo para fora da casa - Sentirei falta de vocês. - então, abriu suas asas e voou para longe.

-Até logo. - Frank despediu-se. 

Ouvi uma porta abrindo no corredor. 

-Vamos ter um certo trabalho. - comentei.

-O modo como o Grand Elementra começou foi de uma forma parecida. Acredito que dessa vez o final será diferente. - Frank fechou a porta por onde Selion saiu.

"Tudo acabará bem." pensei.
Olhei pela janela, na direção da floresta. Por um momento, jurei ter visto uma pessoa alta acenar para mim. Quando pisquei, a pessoa desapareceu. 
"Certo, ainda há alguns problemas." engoli em seco.

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