quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Unholy ✶ A Gravidade do Inferno // Piloto

Íllyasviel
Ponto 0: Casa.


-Já chegamos? - resmunguei para minha mãe.

-Pela terceira vez, não. Espere um pouco mais, Íllya. - ela respondeu irritada.

Neste momento, eu, Íllyasviel Sepharim, viajo em direção de minha cidade natal: Swil Side. De forma resumida, eu a um bom tempo mudei-me para um estado vizinho, devido a exigência do trabalho de minha mãe. Isso ocorreu a cerca de seis anos. Hoje possuo 14 anos e começo a cursar o segundo ano do ensino médio em cerca de uma semana. Antes que questione, eu já respondo: é inusitado, mas uma verdade. É possível estudar no segundo grau com esta idade.

-Está animada? - mamãe tentou superar o clima tenso deixado por sua indelicadeza.

Ela é um pouco sensível quanto a situações assim. Grita com as pessoas e logo se arrepende. 

-Um pouco nervosa. Voltar para minha antiga escola assim, sem avisar ninguém... - desabafei.

Pela janela do carro, vi árvores e mais árvores sendo deixadas para trás. Passávamos por uma larga rua rodeada por uma alta vegetação. Lembro-me de passar por este exato caminho, embora ao contrário, quando deixava a cidade anos atrás.

-Você está de acordo com os termos, certo? Como sua mãe, não gosto nada da ideia de deixá-la por conta própria, mas é preciso. Você entende, né? - ela arrumou o espelho do carro para olhar diretamente meus olhos.

Minha mãe, Diana Sepharim, trabalha como membro da polícia. O carro em que viajo neste momento nada mais é que uma viatura. O banco onde eu sento é habitado rotineiramente por ladrões e criminosos. Eu lido com isso muito bem.
Como já mencionado, mudei-me novamente por causa de seu trabalho. Ela foi transferida pois os melhores oficiais da área deixaram seus postos. Como consequência, minha mãe foi chamada para assumir a liderança.
É bizarro pensar no motivo pelo qual houve esta migração de policiais. A cidade está segura demais. Não há mortes, roubos graves, crimes ou delitos a mais de anos. Nada mesmo. Nadinha.
Porém, minha mãe agora está na chefia. Ao chegarmos, sua ideia é reforçar a segurança. Ela teme muito que esta calmaria possa ser derrubada momentaneamente.
Justamente por isso, ficarei um tempo sozinha em minha nova casa, ou melhor dizendo, antiga casa. 

-Sim, sim. - respondi.

Seus cabelos cor de caramelo estavam presos em um rabo de cavalo, e eram violentamente jogados para trás pelo vento de sua janela aberta. 
Diferente de minha mãe, meu cabelo é extremamente loiro, quase chegando ao branco. Puxei isso de meu falecido pai. 
Por alguns quilômetros permanecemos em silêncio. Assisti as árvores passarem, a única atividade possível. O ideal seria pegar meu celular e jogar alguma coisa, para deixar a viagem menos entediante, mas infelizmente eu faço parte do grupo de pessoas enjoadas que não conseguem fazer nada dentro do carro sem ficar tontas.
Eu quase caía no sono quando minha mãe chamou:

-Olhe, Íllya. 

Uma imensa placa surgia. Nela se lia, em espaçosas letras prateadas: 


Você está chegando em Swil Side. Aproveite sua estadia.

Vibrei de alegria. Estávamos perto!
Ultrapassamos a placa. Tecnicamente, já havíamos chegado.

-Eu pensei que estivesse nervosa. - mamãe apontou.

-Silêncio, deixei-me ter meu momento. 

Nós duas rimos um pouco. Continuamos a caminho de nossa casa. Minha mãe percorria todo o trajeto como se o fizesse todos os dias. Paro para admirar as casas e lojas. Estranhamente, muitas casas exibiam seu conteúdo com as portas e janelas escancaradas. Ninguém parecia temer invasores em suas casas. 
Eram quatro horas da tarde. O caminhão de mudança provavelmente já chegara. Prevejo passar o resto do dia inteiro recolhendo caixas. Com esse pensamento, suspirei profundamente. Quando voltei meus olhos à janela, reparei em um garoto. Não pense errado! Não é algo como: "Ele é tão lindo... gamei." Muito pelo contrário. Meu pensamento foi "Qual o problema dele?", pois o vivente desconhecido estava deitado na calçada com a cara virada para baixo. Pela sua posição, deduzo que ele tropeçou e caiu. O estranho está no fato de que ele não levantou. Outra anormalidade nele eram suas roupas. Vestia roupas compridas e pretas. Estamos em pleno fim de verão, o sol continua intensamente quente, e é completamente impossível entender como ele aguentava usar em seu corpo a cor mais quente existente.
Logo, ele sumiu de minha vista e de minha cabeça.
Prossegui o resto do caminho pensando no quão bem eu dormirei esta noite. 

...

Agora são dez horas da noite. Muitas caixas foram abertas, calos surgiram em minhas mãos - faça sempre o possível para convencer sua mãe a não montar os móveis sem auxílio profissional, é sério! - e meu corpo ficou sujo de poeira.
Sento-me em minha cama improvisada e encaro o espelho do outro lado do quarto. Sou então inundada de sentimentos nostálgicos. Lembro de meus antigos amigos, minha antiga escola, minha antiga vida. 
Reencontrarei todos os meus amigos de infância em breve. Espero que eles não tenham mudado muito, pensei.
Após esta fala mental, algo importante emergiu em minha cabeça. Uma memória foi puxada à tona. 
Eu reencontrarei meu melhor amigo de infância. 
Espere... Qual é seu nome?
Eu não consigo lembrar. Esforço minha mente ao máximo, faço o possível para lembrar de meus momentos com ele. Quando brincávamos juntos, quando comíamos sorvete, adivinhando o que as pessoas na rua falavam... Mas mesmo assim seu nome permanecia oculto.
Lembro-me de todos os nomes de todos os amigos, exceto o dele. Porém, sua imagem permanece fixa em minha memória. Ele possuía curtos cabelos pretos, uma pele levemente corada e olhos castanho-claro. Era a pessoa mais sorridente que se podia encontrar.
Desculpe por esquecer de você, desculpo-me em meus pensamentos.
Chego então ao meu limite. Precisava tomar um banho e dormir, pois o dia cansara-me mais que o esperado. Por sorte, mamãe adiantara o trabalho e contratou alguém para limpar o encanamento, antes abandonado, e tornar os banheiros usáveis. Estavam agora como novos. 
Banhei-me rapidamente, vesti meu pijama e deitei em meu colchão, por mais que estivesse no chão. Fecho meus olhos e começo a tentar planejar meu dia, mas o sono me abate. Caio no mais profundo sono.


...

Dois dias depois, a casa já estava em ordem. Mamãe e eu trabalhamos nela inteiramente durante esse raso tempo. O calendário marcava oito de fevereiro, uma sexta-feira. Dentro de três dias, eu voltarei à escola. Sinto-me um pouco estranha por ficar tão animada por ter aulas.

-Íllya, estou saindo. Voltarei logo. - mamãe disse, na porta da frente de nossa casa - Tenha cuidado e seja responsável.

-Pode contar comigo e blá, blá, blá. Vai logo. - encorajei-a a partir.

A porta fechou-se. Deito-me então em minha cama, soltando um longo suspiro.

-Uma tarde inteira sozinha. - murmuro - O quê fazer?

Minha real vontade é contatar alguma amiga e encontrá-la, mas meu nervosismo me impediu. É um estranho sentimento de confusão entre o fazer e não fazer. Simplesmente não consegui agir.
Por fim, acabo perdendo algum tempo jogando Frutas contra Ghouls em meu celular. Durante o jogo, recebo uma mensagem em um aplicativo não usado a um bom tempo. Eu o abro imediatamente.

A quanto tempo, Íllya. Preciso falar com vc, sua sumida! Tô esperando na praça. Lembra onde fica, certo?

Da mesma maneira que abri a mensagem, respondo-a afirmativamente. Levanto-me de minha cama e verifico o estado de meu cabelo no espelho da parede. Continuava claro e na cabeça, então estava perfeito. Analiso então minhas roupas. Eu vestia uma camisa roxa onde exibia escrito Mind Exposed com uma explosão cheia de elementos aleatórios, como letras, números e símbolos, logo atrás e uma calça jeans comum com um pequeno rasgo no joelho esquerdo - não, ela não foi comprada assim.
Minha emoção era tanta que eu quase esquecera o principal: quem havia falado comigo? Nenhum de meus amigos sabia sobre meu retorno. Leio a mensagem novamente. Não há identificação alguma, nem mesmo uma foto. 
Olhei então para o relógio no canto da tela. Duas da tarde. O quê de ruim aconteceria caso eu fosse dar uma olhada? Eu não possuo planos mesmo.
Desisti de relutar. Abri a porta e saí. Agora ao ar livre, pude sentir os calorosos raios de sol sob minha pele. O dia estava lindo, com certeza. Nem quente, nem frio, poucas nuvens no céu e uma brisa leve e suave o tornava perfeito. 
Tranco a porta de minha casa e saio caminhando com o celular no bolso. Quando passo, noto as pessoas ao redor. Todos pareciam muito contentes com suas vidas. Não havia uma sequer alma tristonha a vista. 
Sigo o caminho que me levaria ao parque mais próximo, aquele onde eu brinquei durante minha infância. Senti muito mais nostalgia ao andar por aquele trecho. 
Chega um momento em que passo por minha sorveteria preferida. Planejei visitá-la no dia seguinte.
Finalmente, chego em meu destino. 
Nervosa, sento-me em um banco no centro do pequeno parque e procuro ao redor qualquer conhecido. Não consegui reconhecer ninguém. Por outro lado, visitar aquele lugar trouxe-me boas recordações. Eu perdera meu primeiro dente caindo daquele balanço. Ai, ai... Lembranças.
Enquanto procuro pelo(a) meu amigo(a), noto um estranho garoto entre as árvores. Ele vestia-se completamente de preto e possuía um olho vendado por uma faixa vermelha. Eu o reconheci imediatamente. Era o jovem deitado no chão de cabeça para baixo do outro dia. 
Seu olho encontrava o meu. Um calafrio subiu pela minha espinha.

-Com licença, moça! - uma voz chamou.

Procurei pela dona da voz. Era uma mulher alta. Ela acenou para mim e depois apontou para uma bola em meus pés.

-Poderia chutar ela? 

-Eu não sou muito boa nisso. - avisei.

Levanto-me e chuto a bola de futebol em direção dela. O chute acaba saindo errado e fazendo uma curva, levando-o para um lugar oposto ao da senhora. 

-De qualquer jeito, obrigado. Ao menos está mais perto. - então ela correu para buscá-la, sendo seguida por uma criança.

Passado isto, volto a olhar para as árvores. O garoto desaparecera.
Resolvo esperar algum tempo. 
Não houve resultados. 
Pego meu celular e tento ligar para a pessoa, torcendo para que ela também tenha internet em seu aparelho. O telefone chama. Durante o terceiro bipe, alguém responde.

-Alo? - a pessoa do outro lado disse.

-Ahn... Olá, eu sou a Íllya. Eu estou aqui esperando no parque como pediu...

-Houve uma pequena mudança de planos, desculpe.

A ligação foi encerrada. 
Ótimo.
Respiro profundamente e solto um grande suspiro recheado de decepção. Tristonha, levanto e volto pelo mesmo caminho pelo qual vim. 
Voltei ao meu dia vago, pensei.
Enquanto voltava para casa, notei novamente a sorveteria do outro lado da rua. Coloco as mãos em meus bolsos, em busca de algum dinheiro. Sou profissional em esquecer coisas importantes em meus bolsos. Fazendo jus a isso, encontrei uma nota de cinco.
Atravesso a avenida, empolgada. 
Quem sabe eu encontre algum velho amigo lá?
Eu caminho quieta. O tempo anda mais devagar. Ao longe, altos sons começam a surgir, elevando-se cada vez mais. Buzinas e gritos histéricos.
Viro meu rosto vagarosamente. Minhas mãos são abertas, fazendo-me largar a cédula que segurava. 

-CORRA! - as vozes gritavam, desesperadas.

Meu corpo travou. Não pude mover um músculo sequer. Ao ver aquele carro vindo diretamente em minha direção, eu já soube que era meu fim. 
Ele não conseguiu frear. Continuou correndo em alta velocidade. Chegou cada vez mais perto. Até que tudo ficou escuro. Neste momento, sinto algo caloroso tocar as laterais de minha barriga. De qualquer maneira, minha consciência foi apagada.


...

-Francamente, Íllya. - uma voz conhecida diz, em voz de reclamação - Você pretende passar MESMO seu tempo DORMINDO?! - a voz quase gritava.

Levanto-me, um pouco zonza. Eu estava deitada em minha cama. Como é possível? Eu lembro nitidamente: fui acertada em cheio pelo carro. Porém, aparentemente, as forças sobrenaturais do trânsito disseram "Hoje, você vive".

-Olha só você! O que te atropelou? 

Minha mãe reclamava sem parar. Seu dia com certeza não fora bom.

-Um carro...? - respondi, incerta.

Logo me recompus. Não sinto dor alguma, porém, em compensação, minha memória não se recorda de nada sobre como cheguei em casa. Quem me trouxe de volta? Por quê? Quando? Onde estão meus ferimentos?

-Eu saio por uma tarde e te encontro nesse estado. DORMINDO. Enquanto eu trabalho duro para sustentar nós duas! - ela bateu seu pé freneticamente.

-Já entendi, já entendi. Desculpe. - decido o melhor para a situação: fingir estar bem - Aliás, o quê faz por aqui?

-Tivemos um problema na cidade, o primeiro em anos. Aparentemente, um garoto foi atropelado. O estado dele está péssimo, você não faz ideia. Ao menos você estava segura enquanto dormia... - mamãe explicou - O acidente foi próximo daqui, na frente daquela sorveteria que você gostava, lembra-se dela?

-Sim. Lembro. - faço o possível para responder sem demonstrar meu terror.

Eu sou a pessoa atropelada. 
Algo está errado. Disso eu sei.
Ainda há dois dias antes da volta às aulas. Usarei o tempo sabiamente. 

-Já passei tempo demais por aqui. Você vai ficar bem? 

-Eu sempre fico. Pode ir.

Minha mãe lança para mim um olhar desconfiado e me dá as costas, andando para fora do quarto. Agora sã e acordada, pude ver seu estado. Seus cabelos continuam presos em seu rabo de cavalo habitual. A grande diferença é sua roupa: está fardada com a típica roupa policial, roupa esta que ela odeia. Em seus pés, usa sua também típica bota de couro preta.
A porta bate atrás dela ao sair.
Imediatamente, corro para frente do espelho da parede e ergo um pouco minha camiseta.

-Como suspeitei.

As laterais de minha barriga estão vermelhas. Como havia suspeitado, eu estive naquele local na hora do acidente, mas eu ainda não sei o quê ocorreu depois.
Na manhã seguinte, irei fazer o possível para descobrir!

...

??? - Perto do quintal de Íllyasviel Sepharim

-Íllyasviel... - minha voz quase gagueja ao dizer seu nome.

Olho para minhas mãos ensanguentadas. 

-Desculpe-me. 

Viro-me na direção oposta e caminho para longe. Alguns passos depois, meu coração se contrai de maneira dolorosa. Abaixo-me e fico apoiado em meu joelho por um momento. 

-Bons sonhos. - tosso sangue no chão e volto a andar, deixando um rastro de sangue na grama por onde passo.

Isso me trará muitos problemas... 
Eu lhe imploro: não se torne um deles.

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